Quem disse que os estranhos à Igreja são incapazes de perceber ou de reconhecer o sobrenatural? Para quem, no domingo passado, ouviu nas assembleias dominicais o que se passou com Jesus na caminhada final para Jerusalém, estranha é a afirmação. A percentagem foi dramática: em dez só um reconheceu a verdade, só um foi capaz de ação de graças; e era um estrangeiro, um estranho, um herético!… Vem isto a propósito do filme ‘Thérèse’, galardoado no Festival de Cannes em que um realizador agnóstico [Alain Cavalier], apaixonado pela figura de Santa Teresa do Menino Jesus, lhe faz o retrato cinematográfico em imagens de rara beleza, segundo a crítica unânime dos críticos da sétima arte.
Teresa de Lisieux foi um caso estranho de canonização, mas exemplar. Foi a primeira vez na história das canonizações dos santos em que a santidade dum cristão foi descoberta através dum simples diário. Quer isto dizer, pura e simplesmente, que se nos fosse dado conhecer os diários da multidão dos pequenos que passam desapercebidos por esse mundo além, desapercebidos dentro da própria Igreja, as canonizações tornar-se-iam impossíveis tecnicamente, pois a memória dos homens não seria capaz de os abarcar. Na comemoração dos Fiéis Defuntos [Crentes Defuntos], a Igreja tem a percepção deste mistério quando diz aquela oração bizarra em que se pede a Deus: “Lembra-te, Senhor…”, como se a memória de Deus fosse como a nossa… É como se a Igreja dissesse: “Só a tua memória, Senhor, pode lembrar tanta Graça!”.
Só a beatice e o farisaísmo são incapazes de ver toda esta Graça no meio de nós, à volta de nós. Os beatos porque na Igreja põem os olhos em branco e os fariseus porque são cegos, estruturalmente cegos. Mas os pecadores e os sedentos de justiça, se topam com a santidade, apanham-na logo. A crise acentuou esta sensibilidade, o que nos faz adivinhar que o século XXI será um século de santos “ou não será”.
Abençoada critica moderna que foi capaz de restaurar na íntegra o diário de Teresa de Lisieux e arrancá-lo à nuvem de mentiras piedosas que o escondiam na ‘História duma Alma’. Aqui há alguns anos tivemos a sorte de ter nas mãos, fotocopiado, página a página, o diário autêntico. Depois foi a recolha dos testemunhos dos últimos meses de vida daquela que comoveu, na primeira metade deste século, o que na Igreja havia de melhor em cabeças e corações.
“Se me encontrardes morta uma destas manhãs, não tenhais pena de mim: muito simplesmente, o Papá [Deus] virá procurar-me. É sem dúvida uma grande graça receber os sacramentos; mas quando o Senhor não o permite, nada importa: tudo é Graça! […] Tenho medo de ter tido medo da morte… Mas apesar de tudo não tenho medo. Que sei eu sobre a separação misteriosa do corpo e da alma? É a primeira vez que me acontece, mas estou abandonada ao Senhor”.
“O Senhor morreu sobre a Cruz, no meio de angústias, e eis, contudo, a mais bela morte de amor. Foi a única que se viu. Não se viu a da Santíssima Virgem. Morrer de amor, não é morrer em transportes místicos. Digo-vo-lo francamente: é o que sinto neste momento” [‘Derniers entretiens. Oeuvres completes’, Paris: Cerf, Desclée de Brouwer, 1971].
Se Teresa de Lisieux foi canonizada, então milhões poderiam ser canonizados. De facto serão. Mas não hoje, nem neste tempo. Porque não há tempo, nem é tempo. No último dia se fará a canonização da multidão incontável. A canonização desta pequena deveria mudar a atitude com que costumamos estar na Igreja e no Mundo. Também na Igreja só sabemos olhar para cima. Claro que em cima não vemos nada, mesmo quando dizemos que vemos. O melhor está em baixo, entre nós. Anda ao nosso lado. Está dentro de nós. A multidão dos pequenos, que Jesus tanto amou, continua esta invisível comunhão de santos à qual nos havíamos de habituar sem habituação. Escândalo na Igreja: são os estranhos que restauram as imagens dos nossos santos. Temos falta de técnicos? Não, temos técnicos a mais. O que nos falta são artistas, artistas da Graça!
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 45 | Voz Portucalense, 16 de outubro de 1986
Imagem: Catherine Mouchet | ‘Thérèse’ [1986]