MEMÓRIA

Leonel Oliveira — quarto e último filho de Ana Joaquina e de Leonel Oliveira — nasceu no dia 9 de maio de 1934, em Freamunde, em cuja Igreja Matriz foi batizado, a 21 do mesmo mês.
Com 13 anos foi estudar para o Colégio do Carmo, em Penafiel, e com 16 matriculou-se no Liceu Alexandre Herculano, no Porto. Mais tarde, no contexto daquilo que ele próprio descreve como uma “profunda conversão interior”, Leonel Oliveira ingressou no Seminário da Diocese do Porto. Depois de dois anos em Vilar, fez os estudos teológicos no Seminário da Sé. Foi, nas suas próprias palavras, um importante período de descobertas e crescimento pessoal: “Desde o meu curso de Teologia que me sinto devorado pelo desejo de tudo saber, o que se passa, o que se pensa, o que se diz. Foi a Teologia que me despertou para o Mundo”.
Leonel Oliveira foi ordenado presbítero no dia 3 de agosto de 1958, por D. António Ferreira Gomes, então Bispo do Porto, dois meses antes da morte de Pio XII, em Roma, e da consequente eleição de João XXIII.
Em setembro de 1959, depois de meio ano como coadjutor na Paróquia de Santo Ildefonso, D. Florentino de Andrade e Silva [então administrador apostólico da Diocese do Porto] nomeou Leonel Oliveira coadjutor da Paróquia de Leça do Balio, com a missão específica de desenvolver uma estratégia pastoral para a área do Padrão da Légua, na interceção de quatro freguesias de Matosinhos, com vista à criação aí de uma nova paróquia, o que veio a acontecer em 1964.
Leonel Oliveira viveu, durante mais de quinze anos, uma intensa e criativa experiência pastoral no Padrão da Légua, um caso de estudo por aquilo que foi, intrinsecamente, e pela conjuntura social e eclesial. Com efeito, o projeto pastoral desenvolvido no Padrão da Légua durante esse período não passou desapercebido aos católicos portugueses mais atentos aos movimentos eclesiais que possibilitaram o Concílio do Vaticano II [1962-65].
Leonel Oliveira assumiu essa missão numa área ainda rural, numa encruzilhada a norte do Porto e num país imerso na Guerra do Ultramar [1961-75], no crepúsculo do Estado Novo. Aí desenvolveu um projeto pastoral consequente, que não só redefiniu um modelo de comunidade cristã, como repensou a presença da Igreja no mundo a partir de uma reinterpretação personalista e cristocêntrica da missão de anunciar o Evangelho. É isso que se percebe das suas palavras: “Passei a vida a juntar pedras, pedras-vivas bem entendido. Escrevi montanhas de folhas que nunca colecionei, pois sempre as quis espalhadas ao vento. Fiz milhares de reuniões, de casa em casa, de rua em rua, pastoral de rua. Construí barracos, muitos barracos, tendas de reunião. Duma só coisa quis saber entre eles, os homens meus irmãos: de Jesus Cristo”.
E apesar de o contexto familiar, eclesial e social ser tentadoramente reacionário, Leonel Oliveira manteve-se desassombradamente livre, nunca refém de atavismos e sem ceder à sedução fácil das tendências ideológicas e discursos utopistas que agregavam uma parte significativa da ‘intelligentsia’ portuguesa da sua geração. E apesar da sua missão, tão enraizada no país real que era o Padrão da Légua por aqueles dias, Leonel Oliveira nunca se deixou diminuir nem fechar por esse meio pequeno e rural, contactou em Paris com contextos eclesiais fundamentalmente desconhecidos em Portugal na década de 60 e continuou a dialogar com a melhor tradição teológica, filosófica e literária da Igreja, sempre atento ao que se passava no mundo.
Na atividade pastoral concreta, da liturgia à catequese, Leonel Oliveira não prescindiu de uma criatividade impressiva, dialogada, sem paternalismos clericais nem pretensiosismos académicos. Foi um presbítero que assumiu, respeitou e acreditou na comunidade, que acolheu outros presbíteros e se rodeiou de leigos, em equipas pastorais dinâmicas e plurais. E não cedeu à tentação de se substituir à Palavra, não confundiu utopia com eclesiologia, acreditou que a evangelização é um exercício de amor fraterno e corresponsável, e empenhou-se no ‘aggionarmento’ proposto por João XXIII.
Apesar da intensidade e das exigências da experiência pastoral, Leonel Oliveira nunca prescindiu da oração pessoal e da reflexão teológica, que temperou com cultura bíblica, atividade teologal e consciência histórica. Os seus textos, extraordinariamente idiossincráticos, intuitivos e querigmáticos, revelam leituras profundas de Dostoievski, Blondel, Claudel, Péguy, Chesterton, Bernanos, T. S. Eliot, Daniel-Rops, Steinbeck, Graham Greene, Mounier, Samuel Beckett, Gheorghiu e, mais tarde, Shusaku Endo. Do mesmo modo, dialogou no seu pensamento teológico e nos seus escritos homiléticos com Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino, Pascal, assim como com os grandes teólogos do século XX: Teilhard de Chardin, Chenu, Lubac, Yves Congar, Karl Rahner, Urs von Balthasar, Bernhard Häring, entre tantos outros.
Em 1975, no contexto das tribulações de um período conturbado, entre processos anónimos de detração e questiúnculas inquisitoriais, Leonel Oliveira partiu para outros caminhos nos passos e atos dos apóstolos: uma curta passagem por Ermesinde antecedeu a ida para o Bairro da Sé, já em 1977. Durante esse período, trabalhou como carpinteiro e marceneiro e converteu-se aos pobres que encontrou num Bairro em ruínas, com a consciência de que “não basta amá-los”.
Durante essa fase da sua vida, Leonel Oliveira colaborou com o presbítero Arlindo Magalhães, na comunidade da Serra do Pilar. Depois de um período muito intenso de encontros, desencontros e reencontros, esse foi um tempo de recolhimento, de silenciamento: “São precisos anos para que se esqueçam de nós”.
No Bairro da Sé, primeiro na Viela do Anjo e depois na Rua da Bainharia, Leonel Oliveira lutou contra as ruínas que crescem dentro das pessoas que vivem dentro de ruínas. Nasceu assim o Grupo de Apoio ao Bairro da Sé e o Projeto Sé, que Leonel Oliveira descreveu assim: “De simples moradores da Freguesia da Sé, que éramos, resignados e habituados ao Horrível, quase insensibilizados para as realidades gritantes ao pé da nossa porta, somos agora uma população consciente dos seus próprios problemas, dos direitos que nos assistem, e dos lugares onde de uma forma autorizada e reconhecida, constitucional, podemos ser voz dos que não têm voz”.
Em 1995, a pedido dos párocos da cidade, o Bispo do Porto, D. Júlio Tavares Rebimbas, criou o Centro Catecumenal e nomeou Leonel Oliveira como responsável pela iniciação de adultos em-Cristo e na-Igreja. Foi assim incumbido de uma missão que exigiria a sua tão intrínseca e criativa apostolicidade: “A busca, como doutrina e como prática, da mais eficiente instituição que na Igreja fez Cristãos foi escola de Santos, treinou os Mártires, formou os Doutores, deu à Igreja os seus mais famosos Bispos e, mais tarde, aos Monges, forneceu o quadro vivo da Reconversão e donde partiram, como matriz, e se desenvolveram, as escolas da Atividade Teologal. Catecumenado de que a Igreja nunca perdeu o rasto, ainda que lhe tenha perdido a forma sob a avalancha da conversão maciça de povos e nações inteiras. Catecumenado agora necessariamente exigido no crepúsculo da Cristandade e por força das disposições preliminares do Novo Ordo quanto à Iniciação Cristã dos adultos”.
Em 1996, Leonel Oliveira foi nomeado reitor da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Hora de Fradelos, em cuja capela há já alguns anos celebrava a eucaristia e onde, desde 1991, exercia funções de capelão, como escreve em 1993: “Neste momento sou um simples capelão, e faço a experiência fascinante de exercer o meu ministério presbiteral num espaço não necessário, o que me exige um esforço teologal de aprofundamento do lugar de uma pequena capela no centro e nas encruzilhadas da vida da Cidade”.
Em 2002, o Bispo do Porto, D. Armindo Lopes Coelho, cedeu uma casa na Rua de Costa Cabral para o funcionamento do Centro Catecumenal, onde Leonel Oliveira passou a residir. Acompanharam-no os amigos de sempre e os seus livros. Entretanto foram chegando novos amigos e aquela casa foi sendo habitada ao modo de ‘domus ecclesiae’.
Leonel Oliveira morreu no dia 2 de novembro de 2015, com 81 anos, em Freamunde, na casa onde nasceu.
Na Capela de Fradelos, como no Padrão da Légua e na Serra do Pilar, Leonel Oliveira foi igual a si próprio: incansavelmente criativo, dedicado, disponível, apostólico; nunca abdicou da alegria e da simplicidade, da coragem e do desassombro; tornou-se uma voz por vezes incómoda, mas sempre livre e profética. Nunca se deixou apoucar por passadismos e, no regresso às fontes, buscou sempre a matéria-prima do presente, enquanto assumiu a missão de guardar o futuro.
Presbítero da Igreja, intelectual admirável, viveu a sua missão apostólica como um exercício de inteligência da Fé e ciência da Esperança. Foi um humanista cristão e um cristão humaníssimo. Do Padrão da Légua à Capela de Fradelos, durante mais de cinquenta anos de vida pastoral, Leonel Oliveira escreveu milhares de textos, tão idiossincráticos que, ao lê-los, temos a sensação de que escutamos a sua voz, o modo tão característico como os lia nas assembleias litúrgicas, entre amigos. Trata-se de um legado inestimável para interpretar o seu tão original pensamento teológico e teologal. Mas o seu principal legado não são os textos… são as pessoas, as pessoas a quem abriu a porta e para quem pôs a mesa – mesa-comum – e a quem ensinou o Evangelho, à luz dos sinais-dos-tempos, e a quem testemunhou e com quem partilhou o Cristo Jesus.

Em 2013 foi publicado «Duma só coisa quis saber», livro que reúne dez conferências e comunicações [pronunciadas entre 1993 e 2010] e dezasseis artigos publicados nos «Cadernos» do Centro Catecumenal [entre 1999 e 2003], a que foram acrescentados cinco textos da rubrica “Volta ao Mundo em 80 linhas”, assinados com o pseudónimo Preste João. Apesar de não apresentarem uma unidade temática evidente ou um fio condutor, esses textos são significativamente representativos do pensamento e discurso teológico e teologal de Leonel Oliveira.
Enquanto preparamos a edição de «Actos e Actas», a colaboração regular que Leonel Oliveira manteve, entre 1985 e 2007, no semanário diocesano Voz Portucalense, apresentamos aqui os seus textos como uma importante ferramenta pastoral de cultura bíblica, consciência histórica e atividade teologal, tanto no contexto pessoal de crescimento espiritual, como no contexto da vida comunitária.


José Rui Teixeira | 2017