Os tradutores que temos não valem os de antigamente. O medo de chocar acaba por esbater o que é chocante. Pudibundos, os tradutores que temos recorrem sistematicamente aos sinónimos atenuadores e disfarçantes. O medo de visualizar os males, leva-os a passar-lhes ao lado. O grande prejuízo, causa e efeito de preconceito, está em que, evitando chamar as coisas pelo seu nome, cai no rodeio das questões e na confusão derivada. Como falar do sexo sem amor? Imoralidade? De facto, é imoralidade, mas há tantas imoralidades tanto ou mais imorais que não têm nada a ver com o sexo! Desonestidade? Mas não foi o próprio Jesus que denunciou a pureza desonesta dos Fariseus? O padre Manuel Bernardes não disse das freiras do seu tempo que “eram puras como anjos e orgulhosas como demónios”? Dissolução? Há uma certa dissolução, uma grande dissolução no desencadeamento ou na explosão do sexo sem amor, desenfreado ou recalcado. Mas também há dissolução — não menor — na agressividade desencadeada ou recalcada em todas as suas formas de arrogância e violência, de vaidade e de autossuficiência. Sem o recurso aos palavrões, de facto, não abundam as palavras para chamar certas coisas pelo seu nome.
Sem amor, bem entendido, o sexo é ‘fornicação’. É curioso que o desuso da palavra que o nomeia em todos os seus aspectos, até fisiológicos, coincide com a desatualização do seu antídoto: a palavra e a coisa ‘castidade’. Esvaziando a castidade de objecto, quando a transferiram para a ‘pureza’, os tradutores que temos aumentaram mais ainda a confusão. Estes tradutores que, repito, não valem os de antigamente, não provocaram a confusão. Navegam na confusão e alimentam-na. Porque é grande a confusão neste domínio… outrora tão recatado! O exibicionismo moderno também não o torna mais acessível do que antigamente. Pelo contrário, a confusão que hoje reina neste domínio multiplicou os prejuízos e os preconceitos. Apesar de hoje todos sabermos tudo, de facto não sabemos muito mais do que os nossos pais sobre o mistério da nossa estranha e grande fragilidade neste capítulo. Que os fornicadores de hoje mistifiquem e mitifiquem a velha fragilidade em novos cultos fálicos e dionisíacos; que a psicologia e a sociologia americana concluam, no seu típico empirismo, que as coisas são porque são e dêem cobertura científica a uma falsa compreensão deste drama — nada torna as modernas abordagens ao sexo humano nem mais competentes, nem mais sérias.
Se hoje fossem mandadas missões a Sodoma e a Gomorra, quais seriam as instruções que Jesus nos daria? Apesar de uma grande sodomia vastamente generalizada em certas culturas e povos e do ‘pansexismo’ fortemente divulgado e comercializado pelos media e pelos publicitários, a existência de ‘sodomas’ e ‘gomorras’ é pura ficção. A mentalidade geral é tolerante, mas o senso comum teórico e prático tem horror às aberrações sexuais. “Se em Sodoma e Gomorra tivessem acontecido os milagres que aconteceram em Cafarnaum, teriam feito penitência e teriam subsistido ainda hoje” [Mateus 11, 23]. A fornicação é um vício muito grave. Lia-se há uns anos numa revista a preto e branco esta frase: “O sexo sem amor é triste, é estúpido e é mau”. É descarado e desavergonhado eufemismo fornicar e dizer que se faz amor. O amor humano não é meramente glandular. Não se diga que a fornicação é invencível, mesmo naquelas formas que o vulgo considera incuráveis. Ela pertence ao domínio das paixões, ‘spiritus fornicationis’. É uma forma de possessão, como qualquer outra servidão interior.
Quando Santo Agostinho já havia decidido converter-se, ele diz nas ‘Confissões’ [VIII, 11] que parecia ouvir as vozes das suas paixões: “Reduzia-se já a menos de metade o número de vezes que lhes dava ouvidos. Contudo, faziam-se retardar, por duvidar arrancar-me e desfazer-me delas, para correr aonde me chamavam, enquanto o hábito violento me rosnava: ‘Julgas que poderás viver sem elas?’ Mas o hábito já me dizia isto com voz débil”.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 48 | Voz Portucalense, 20 de novembro de 1986
Pintura: pormenor de “O jardim das delícias terrenas” [1504] | Hieronymus Bosch [c.1450-1516]