Uma viagem a Lião não é uma simples viagem. É impossível para um cristão visitar a antiga capital da Gália sem se lembrar de Ireneu e de Blandina, sem que lhe apeteça voltar a ler as mais antigas atas [autênticas] dos Mártires de Lião. Para um cristão a visita a Lião tem o sabor duma peregrinação, duma viagem às Fontes.
Naquele tempo, a Igreja Ocidental não se resumia em Roma, e as Igrejas locais ainda não se chamavam particulares. Particulares de partícula, de à parte, ou de quê? Péssima tradução em que o Bispo do Lugar — com a Igreja do Lugar — ficam sob reserva duma Igreja Universal que não se reconhece inteiramente na parte… João Paulo II visita esta semana a Igreja de Lião. João Paulo II é bispo da Igreja de Roma. Apesar do primado, exatamente devido ao primado [primado numa Colegialidade], o Papa não é o bispo — nem um super-bispo — da igreja de Lião. Com ele, a Igreja de Roma visita a Igreja de Lião. A Igreja de Lião tem um bispo, na sucessão de Ireneu, que não é João Paulo II. Porque as Igrejas do Ocidente se referem a Roma duma forma particular, a que não se referem da mesma maneira as Igrejas [católicas] do Oriente, podemos dizer que — administrativamente — João Paulo II visita a igreja de Lião como seu patriarca, Patriarca do Ocidente.
Por que são importantes todas estas atribuições? Na hora ecuménica que vivemos, ou somos rigorosos nas palavras, nas atitudes e nos atos capazes de contrariar os maus hábitos criados contra a Colegialidade, ou estas maravilhosas viagens dos papas do fim deste século ficarão na história como gigantescas operações de romanização eclesiástica. Porque às vezes fica-se com a sensação de que não é o Papa que é peregrino, mas as igrejas que ele visita é que o peregrinam. Neste sentido, o lema desta visita — “Reencontra hoje o melhor da Tradição” — poderá ser renovador, muito renovador.
Naquele tempo, qualquer Igreja, em qualquer lugar, tomava iniciativas que tinham que ver para além do lugar. Não havia aquelas subtis distinções escolásticas de primeira ou última palavra, e não havia procedências na inspiração. “O Espírito não sopra onde quer”? [João, 3, 8].
A culpa é dos média ou dos organizadores destas viagens, ou então o defeito está nos nossos olhos: como, quando nasce o sol as estrelas se apagam, a figura do Papa parece que apaga tudo à sua volta. Ora, nós temos um Papa, não temos um rei-sol. João Paulo II, o papa que eliminou o plural magestático, nunca o faria, nem nunca o diria, à maneira do rei-sol: “L’Eglise c’est moi!”. Nenhum homem, por mais altamente colocado e dotado, resume Jesus Cristo. Ninguém o resume e ninguém o esgota. Há qualquer coisa de confuso na deslocação de vigário de Pedro para vigário de Cristo.
A questão do método ainda está no princípio e o futuro reserva-nos grandes surpresas quanto às ligações e às relações entre os membros do Corpo de Cristo. Mas é curioso o tema que o Papa escolheu para esta viagem a Lião: “Reencontra hoje o melhor da Tradição”.
Esta viagem, pela história do sítio que o Papa visita, não é como qualquer das outras. Lião foi, juntamente com Cartago e com Roma, um dos três altos e maiores lugares da Igreja do Ocidente, o triângulo eclesial nos séculos II e III. Autênticas igrejas-mãe, eram os três grandes centros de irradiação do Evangelho no Ocidente. Centenas de igrejas e milhares de Comunidades nasceram e multiplicaram-se a partir delas.
Era o ano de 177. Também em Lião, capital da Gália, chegou a hora do martírio. Um motim popular forçou a autoridade romana a intervir. Cinquenta cristãos são presos, julgados e executados. O velho bispo de Lião faz parte daquele grupo: “O velho bispo tinha mais de noventa anos. Estava numa extrema fraqueza física, respirando com dificuldade, mas sentia-se nele a influência do Espírito e, no seu ardente desejo do martírio, reencontrava as forças… Levado pelos soldados ao tribunal, estava rodeado pelos magistrados da cidade e da multidão subiam gritos contra ele, como se ele próprio fosse o Cristo. Interrogado pelo legado sobre o Deus dos cristãos, respondeu assim: ‘Conhecê-lo-ás, se fores digno disso'” [da Carta dos Cristãos de Lião, citada por Eusébio de Cesareia, in ‘História Eclesiástica’, V. 1].


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 43 | Voz Portucalense, 2 de outubro de 1986

Imagem: João Paulo II.