Há escolas de espiritualidade que se comprazem em reviver os passos da vida do Senhor. São tão legítimas como as outras. Desde as noelistas aos passionistas, muitos santos fizeram escola e multiplicaram até ao infinito devoções que ajudaram muitos pecadores, aqui ou acolá, a sair da mediocridade e a avançar em caminhos de perfeição. Digamos mesmo que muitas boas devoções, favorecidas por este ou por aquele papa, por este ou por aquele bispo, ajudaram muitos cristãos a aquecer ou até a ferver [em fervor] face a liturgias frias, formais e aborrecidas. O fenómeno foi sempre o mesmo. Nunca faltou o revivalismo com os seus carismáticos, sobretudo quando a Liturgia faltou ou mancou na mão de legalistas e rubricistas. Porque a Liturgia se tornou reservada e fechada à inovação e à criatividade, as paraliturgias abundaram à volta de, antes, depois e durante os atos litúrgicos. Desde iniciativas muito interessantes, até fantasias de mau gosto, é a história das devoções. Para o melhor ou para o pior, não é possível ignorar esta história. Nem é possível, nem é bom, pois tantas vezes — e durante muito tempo — o melhor de nós, à falta do melhor, passou por ali. Então, em termos de participação, a única coisa que tantas vezes foi deixada aos fiéis foi a Devoção.
Entre os fenómenos mais curiosos na história das devoções, foi o ‘faz de conta’ estendido a todos os tempos e festas da Igreja, desde a Missa aos Ofícios, até aos Sacramentos que exigiam por natureza participação consciente dos fiéis. Chegaram a inventar-se métodos de assistência à Missa em que nos gestos mais insignificantes do Ministro se viam, se imaginavam ou se fantasiavam cenas da vida do Senhor. As imagens piedosas ajudavam este imaginário, por exemplo metendo dentro da hóstia o Menino Jesus, ou rodeando-o de gotas de sangue. Porque e na medida em que persiste esta atitude devota, ocupando desnecessariamente o lugar duma Fé adulta e teológica, ou impedindo-a, uma renovação litúrgica e pastoral torna-se urgente e imperiosa. Vem tudo isto a propósito do Advento.
O perigo da redução do Advento a uma mera preparação das festas natalícias está sobretudo no relevo do episódico sobre o teológico e na mitificação a que pode ficar sujeito o Tempo animado pela Graça, quando se torna repetição. Não é o Eterno Retorno? Um Jesus que nasce todos os anos, que morre e que ressuscita todos os anos, não é o Cristo, nem o Cristo histórico nem o Cristo da Fé. Pode agradar aos poetas e aos etnólogos, ou aos jornalistas encarregados de todos os anos comentar os nossos tempos e festas. Esse Jesus não é o Cristo! Podem os catequistas achar que é um belo programa desdobrado ao longo do ano para ensinar aos meninos a vida de Jesus. Pode ensinar-lhes a vida de Jesus, mas na vida da Igreja, Corpo de Cristo, não os inicia, antes os ofusca.
Há o memorial. Este sim, este é catequético. Mas ninguém pode esquecer que todo o memorial na Liturgia é sacramental, isto é, inicia em Cristo e na Igreja.
O Advento é o tempo por excelência de análise dos Sinais dos Tempos. A escatologia faz do Advento, que prolonga em vigília o Tempo Comum que aponta para os fins e que chega ao fim. Para fazer do Advento uma mera preparação das festas natalícias, será preciso abusar, multiplicando meras alusões aos textos bíblicos e às orações do Missal. Desde o 1.º Domingo [que retoma o penúltimo do Tempo Comum] até 18 de Dezembro [com João Baptista apelando para “aquele que já tem na mão o machado para cortar toda a árvore que não dá fruto”], tudo na primeira parte do Advento nos fala do Fim, e não do Princípio! O Próprio Natal é epifânico, no seu conteúdo e na sua celebração. O Tempo é irreversível, fisicamente irreversível, e a Salvação tem os seus tempos e momentos irrepetíveis, todos singulares. Pastoralmente, seria preciso revalorizar a Novena que prepara o Natal, a única novena litúrgica do calendário. Mas isso é uma outra história, que tem muito a ver com o comércio e com as tradições anteriores ao próprio Natal de Cristo. Poesia? A poesia nunca fez mal a ninguém. Mas nestes tempos mais próximos já nem a poesia se salva, nem a poesia nem a música. Só os brinquedos das crianças… e dos adultos.
Vai demorar ainda um certo tempo até uma nova pastoral conseguir um outro Natal. Cada geração tem o Natal que merece. Entretanto, o Advento ainda não foi ocupado, a não ser pelos adventistas milenaristas, a não ser pela feira natalícia, que essa a partir da Imaculada Conceição acende logo as luzes para só as apagar nos Reis…


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 49 | Voz Portucalense, 27 de novembro de 1986

Imagem: ‘Adoração dos pastores’ [1690] | Caravaggio [1571-1610]