Desde as homilias às pastorais, desde os documentos oficiais até às cartas encíclicas, nas Igrejas habituámo-nos a dizer e a ouvir um discurso indiscutível, que não possibilita nem facilita o largo espaço de debate das questões com que todos nos debatemos. É um certo ar “sagrado”, intocável, discurso acabado — sempre a última palavra, em discursos cerrados — e que impede à maioria o conhecimento e a participação em questões que lhes dizem respeito.
A formação e a circulação duma opinião pública dentro da própria Igreja é quase sempre marginalizada ou então reservada aos especialistas, por falta de lugares, tempos e formas de comunicação livre entre os membros da Igreja, pois quase todos os canais estão ocupados “ex cathedra”. Mais de uma vez vimos João Paulo II manifestar cansaço por entre linhas cerradas dos discursos que lhe “fabricam” ou que ele próprio escreve com antecedência. São famosas as suas “abertas” e maravilhosos os seus improvisos, ao modo de João XXIII, e revelam problemas, dificuldades e hesitações, cuja sinceridade nos toca muito mais do que a afirmação cansada dum discurso repetido e previsto, às vezes “encomendado” por agentes ou intermediários muito pouco e mal informados.
Que lugar, por exemplo, teria hoje uma carta de S. Paulo [a 2.ª aos Coríntios ou aos Gálatas, ou até aos Romanos], em que o apóstolo abre o seu coração, as suas buscas e revela os problemas com que se debate ele próprio e as Igrejas a quem escreve? As nossas assembleias devem ter dificuldade em perceber aquele tom franco ao lado dos discursos “seguros”, acabados, infalibilistas de hoje.
Por detrás destes discursos cerrados há, de facto, um debate que nem sempre se adivinha. Por vezes, apanham-se algumas “abertas” que nos tocam profundamente e nos prometem, a todos os níveis, um relacionamento mais franco entre os membros da Igreja, de alto a baixo.
Falando do título de “vigário de Cristo”, João Paulo II dizia recentemente, no seminário maior de Roma: «Devo dizer-vos que prefiro não abusar dessa expressão e empregá-la raramente. Prefiro dizer: “Sucessor de Pedro”, sim; mas prefiro ainda mais dizer: “Bispo de Roma”» [L’Osservatore Romano, 5-6 de Março de 1984].
Os jornalistas católicos não podem esquecer a célebre passagem da “Mensagem Dirigida ao III Congresso da Imprensa Católica”, por Pio XII, em 18 de Fevereiro de 1950, sobre o lugar da “opinião pública” no interior da Igreja: «Quereríamos ainda acrescentar uma palavra relativa à opinião pública no próprio seio da Igreja. Só podem espantar-se com isso aqueles que não conhecem a Igreja ou a conhecem mal. Porque, enfim, ela é um corpo vivo e faltaria qualquer coisa à sua vida se a opinião pública lhe faltasse, falta cuja reprovação recairia sobre os pastores e sobre os fiéis».
Onde podem as vozes “autorizadas” da Igreja — que nunca falam em seu nome, mas “em nome do Senhor” e do testemunho da Comunhão dos Santos — encontrar o “sensus Fidei”, o “sensus Fidelium” — o “consenso dos Crentes” —, se não há na Igreja a circulação duma opinião eclesial [de baixo para cima e de cima para baixo, ou melhor, para evitar a “pirâmide”] entre todos os membros do Corpo de Cristo?
Por outro lado, a facilidade com que na Igreja os leigos podem hoje comunicar uns com os outros [os leigos, essa imensa maioria silenciosa], contrasta com o ambiente de “submissão” e de “murmuração” com que se vive em vastos sectores da Igreja. Chega-se a ter a impressão duma “massa” cuja única forma lhe é dada por quem, de fora, lhe impõe os limites e lhe contém as energias caóticas. É verdade que a impressão é falsa. Mas este rosto, neste momento, ninguém nos tira, ainda que seja a máscara do nosso descontentamento…
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 55 | Voz Portucalense, 15 de janeiro de 1987
Fotografia: Basílica de S. Pedro | Roma