Projetar sempre o homem projetou, desde que é “faber” e “sapiens”. Sempre projetou como sempre se projetou em tudo o que fez e disse. Mas uma coisa é projetar, outra coisa é a mania de projetar que assolou este século. Os governos, então, criaram um autêntico vício. Já Mirabau, o célebre orador da Revolução Francesa, denunciava “o furor de governar, a mais funesta doença dos governos modernos”. O vício de legiferar está a transformar os governos e os parlamentos em fábricas de leis num ritmo de produção que, a determinada altura, perde o contacto com o real, com as reais necessidades e possibilidades dos cidadãos. A invasão das ideologias veio agravar a doença, num frenesim desmedido e violento. Nada nem ninguém escapa a esta sanha, que tomou a cabeça de toda a gente. Nem os cristãos escapam à mania do projeto, projeto-de-vida, projeto-de-sociedade, projeto-de-Igreja, sem eles próprios advertirem o quanto estão comprometendo o frágil equilíbrio das pessoas e das comunidades. É um furor messianista que se apossou de toda a gente, em projetos de paraísos sempre adiados. Reformas e mais reformas, umas atrás das outras, mal tiveram tempo de se dizer e menos de se experimentar. Mania das soluções finais, globais e totais. Reestruturações sobre reestruturações, estruturalismo ignorante, esquecido das possibilidades da natureza humana num século que diz saber tudo de psicologia e de sociologia. Se este século, de facto, levasse a sério as aquisições científicas de que se orgulha, tornar-se-ia mais sábio, pois todos os ramos do saber apontam hoje para os “limites” do Homem.
O cristão Pascal, célebre físico e matemático do século XVII, continua a ser extraordinariamente moderno: “Os nossos sentidos não apreendem nada de extremo. Demasiado ruído ensurdece-nos, demasiada luz ofusca-nos, demasiada distância e demasiada proximidade impedem-nos de ver, demasiada extensão e demasiada brevidade do discurso obscurecem-no, demasiada verdade abala-nos. Para nós, os primeiros princípios são demasiado evidentes. Demasiado prazer incomoda. Demasiadas consonâncias desagradam na música. E demasiados favores irritam. Não sentimos nem o extremo calor nem o extremo frio. As qualidades excessivas ferem-nos em vez de nos sensibilizarem. Deixamos de sentir, fazem-nos mal. Demasiada juventude e demasiada velhice tolhem o espírito. Em suma, as coisas extremas são para nós como se não existissem, e não somos nada para elas. Escapam-nos, ou nós a elas” [‘Pensamentos’ I, 72].
O fantástico consumo de drogas verificado por estes dias revela que as nossas estruturas biológicas e psicológicas normais começam a não aguentar. Mais, cada vez mais, “uma vez não basta”. Já não é uma luxúria qualquer. É fornicação mental e afetiva generalizada. Ai de quem não prometer! Pode não ter, mas tem que prometer. É o século das promessas, pois todo o mundo contínua a exigir o paraíso, paraíso perdido… Ai dos pequenos! Todos passarão por cima deles se for preciso. Se forem apanhados no caminho desta corrida, serão esmagados ou arrumados para a valeta. A febre é de tal ordem que — quem diria? — no século da Justiça Social, os serviços de Segurança Social, de Saúde Pública, do Ensino [acessível a todo o cidadão] e do Emprego, estão a ser desmantelados por toda a parte, acusados de serem a principal causa da Dívida Pública. E a palavra que tanto repugnou às chamadas sociedades livres — sacrifício — e que era a receita perpétua das chamadas sociedades socialistas, volta a ouvir-se na boca de quem não tem vergonha de tanto prometer o que não pode dar.
A única saída para a permanente inquietação do coração humano é o Amor. Não o amor glandular, que este pouco aguenta. Mas o amor de que fala o cristão Agostinho de Hipona, quando diz: “Tudo tem uma medida, mas a medida do Amor é amar sem medida”. De facto, todos os sinais de desmedida do século exprimem imensa carência afetiva, mal do Coração, desde meninos até velhos. Só um deus pode saciar tão grande fome. Os homens acabam por se devorar uns aos outros. E não serve de nada multiplicar os ídolos, ou endeusar os que não passam de homens e de obras das mãos dos homens. Os deuses são Nada, projeções mentais e fantasmas da nossa carência fundamental. Só um deus verdadeiro poderia satisfazer o que Buda chamou a causa de todo o mal: a sede, que é de existir. “Deus é Amor!”. Sim, o Deus verdadeiro, Aquele-que-é, é Amor. Este “Amor derramado em nossos corações”, pela Fé.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 56 | Voz Portucalense, 22 de janeiro de 1987
Pintura: “A luta entre o Carnaval e a Quaresma” [1559] | Pieter Bruegel