À volta das generalidades ou à volta das contrariedades? Os bispos franceses, ao preparar o próximo sínodo romano, sentiram nitidamente que não saíam do sítio, isto é, do cerco das defesas em que a cidadela católica no muito recente passado se encerrou. Tão perfeitamente se chegou à definição daquilo que os leigos não são, que agora é um quebra-cabeças descobrir-lhes a identidade. A clivagem entre clero e leigos atingiu tais níveis de separação que aquilo que no tempo de S. João Crisóstomo [século IV] foi um método de ‘distinguir para unir’ se tornou um fosso intransponível entre a torre de menagem [e de homenagem!] e o corpo da cidadela… O nome só é importante na medida em que se procura o ser que se nomeia. ‘Leigo’ não é um nome muito famoso, nem antigamente nem ultimamente. Começando por ser povo, apesar do povo de Deus, leigo começou por significar coisa nenhuma ou ninguém, e acabou por designar ‘leigo na matéria’. A Ação Católica levou ou elevou o nome aos píncaros: os leigos passaram a ser uma reserva de notáveis, coroa secular dos bispos à falta dum poder temporal sem poder. O Vaticano II tentou fazer-lhes a teologia, mas não conseguiu ir muito longe, por falta de prática. Mas as portas que o Concílio abriu e proibiu que se fechassem foram suficientes para que, da parte dos bispos, os leigos criassem grande respeito, coisa que os presbíteros há tanto tempo entre nós ainda não conseguiram. Os bispos franceses sentiram que patinavam e, coisa maravilhosa, não esconderam isso, não fingiram outra coisa: “Uma impressão de confusão, partilhada pelos próprios bispos — ‘Nós ronronamos’, desabafou um deles —, dominou um debate que a hierarquia católica considerava duplamente indispensável” [‘Le Monde’, 30 de outubro de 1986].
O próprio grupo de leigos convidados para o debate de Lurdes, representando a diversidade dos movimentos e serviços da Igreja, outrora tão reivindicativos, parecia muito moderado, só o secretário-geral da ACO [Action Catholique Ouvrière], censurou aos bispos a sua apatia: “Os vossos reflexos naturais são o temor, o assistencialismo e a exclusiva confiança nos notáveis!”. Crítica um pouco injusta para homens duma Igreja que, entre todas as Igrejas da Europa, têm feito um esforço notável de aproximação. E eles não têm culpa da deriva em que todos nós neste pós-concílio temos navegado. Mas em Lurdes, numa assembleia episcopal aparentemente tépida, talvez se tenha avançado mais do que parece. Ali, talvez pela primeira vez desde há muito tempo, os leigos finalmente começaram a ficar para trás, para serem substituídos, como diz o jornalista que reportou aquela reunião, pelos Batizados: “É preciso restaurar a palavra ‘Batizado’, interveio M. Coffy, arcebispo de Marselha, pois a missão da Igreja não está reservada a uma elite, mas é tarefa de todos os que receberam o Batismo”.
É o ovo de Colombo? É muito mais do que isso. É a dignidade unificante, pessoal e comunitária de todos os membros da Igreja, membros do Corpo de Cristo, enfim despoeirada nos olhos e no coração da fé. Num ápice é a percepção, sem reservas nem restrições, da extensão da Igreja para além de empenhamentos brilhantes e de representações notáveis, ou até de níveis ou de expressões de prática religiosa. É o ecumenismo dentro da própria igreja! É a Una e Católica enfim percebida até às pontas indefiníveis. Será que esta geração aceita uma definição tão indefinida? Indefinida? O Batismo não é tão Indefinido como isso! Não é o Batismo que nos dá o carácter? Aliás, é o Batismo que nos define. Sem o Batismo, o Papa seria igual a nada e os bispos seriam zeros à esquerda. Sem o Batismo, ou o desejo dele, não há salvação!
“Os leigos — diz João Crisóstomo — são o pleroma do bispo”. Pleroma é uma palavra bíblica que quer dizer ‘plenitude’.
“Ser fermento, ser perfume, faz parte da própria essência do cristão. Negar ao cristão a possibilidade de agir, é a mesma coisa que negar ao sol a possibilidade de iluminar e aquecer” [S. João Crisóstomo, Homilia 62, 4].
Não passemos para os leigos o que se passou entre os ministros da Igreja, ao exagerar as graduações e as distinções. Não haja clericalização entre os próprios leigos.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 47 | Voz Portucalense, 6 de novembro de 1986
Imagem: ‘Ceia em Emaús’ [1606] | Caravaggio [1571-1610]