Ontem com os Judeus, logo depois com os Gregos e hoje com os Modernos [os ateus mais do que todos os outros], a ideia que os homens fazem de Deus não aguenta a encarnação do Verbo em Jesus Cristo, nem a crucifixão, nem a identidade do Cristo com a igreja, seu Corpo. O que em Cristo choca os homens de todas as culturas e cultos, como à primeira vista poderia parecer e como depois da análise de todas as heresias cristológicas se poderia concluir, não é a sua natureza divina, mas a sua humanidade, cujas consequências estamos ainda longe de tirar completamente. As dificuldades cristológicas passaram nesta geração para a Igreja, mas são as mesmas dos primeiros séculos e são do mesmo teor.
Os arianos não suportavam a ideia que um homem pudesse estar tão unido a Deus que fosse um com ele: ‘homo-ousios’, consubstancial. Foi por essa razão que Ario construiu toda uma teoria sobre o Verbo de Deus. Naquele taramelar da reflexão teológica dos primeiros anos não se discutia ainda a pessoa de Cristo, mas a sua relação com Deus. Ora, para Ario e os seus sequazes, o Verbo assim tão unido à Carne não poderia ser consubstancial a Deus. Mas, de facto, a dificuldade dos arianos não era trinitária — os modalistas encontraram outra solução. A dificuldade estava na Carne, na encarnação, na humanidade do Cristo Jesus. Era uma dificuldade típica dos Gregos, platónicos esturrados, para quem a Carne era a expressão do Pecado incompatível com a Essência, a ideia pura de Deus. Dos arianos aos monofisitas, permanece a dificuldade. Estes [sobretudo os primeiros: Apolinário de Laodiceia e Eutiques] não aceitavam em Cristo duas naturezas, porque lhes repugnava que Deus estivesse tão unido a um homem que não o transformasse em si próprio.
As dificuldades de acreditar e por isso de esperar — como de amar, em Cristo e na Igreja, Corpo de Cristo —, continuam as mesmas em vastos sectores periféricos intercalados entre o mundo e a Igreja. Arianos, sem o dizerem e sem o saberem, há muitos cristãos: cristãos para quem Jesus Cristo é um homem formidável, o melhor dos homens, o mais puro, o mais sábio, mas que não aceitam de facto que ele seja consubstancial de Deus, tão unido a Deus que seja “Deus de Deus, Luz da Luz”. Não porque lhes repugne a divinização, tendência normal dos homens e dos povos para divinizar tudo o que consideram grande, mas porque lhes repugna a humanização, a encarnação. Os homens desejam subir, não desejam descer. Desde o princípio que os homens sonham ser deuses e não se conformam em ser homens. Monofisitas sem o dizerem e sem o saberem há outros muitos cristãos, aparentemente mais próximos da Igreja, para quem Jesus Cristo é indiscutivelmente Deus e para quem pensar em Jesus homem é coisa que os indigna e os revolta. São os nossos monofisitas, da Religião Popular, mais teológicos do que se julgam… Para estes, a Imaculada Conceição de Maria, a sua virgindade, a sua assunção, os milagres de Jesus, desde o seu nascimento virginal até à ressurreição, tudo enquadra a divindade exclusiva de Jesus. Como explicam estes monofisitas de trazer por casa a crucifixão, morte e sepultura de Jesus? Um grande cenário montado por aquele que “morreu por nós na cruz”, para nos dizer o seu amor!…
Mas as dificuldades do Mistério de Cristo não se passam ou não se pensam mais ao nível abstracto, nem no plano da pessoa de Cristo. Hoje, todos os preconceitos cristológicos foram transferidos para a Igreja, para a eclesiologia. E aqui logo aparecem os modernos críticos da Igreja, sempre prontos a atirarem-lhe pedras. Idealmente, ideologicamente exigem a identificação da Igreja com Jesus Cristo. Na prática recusam-na e acusam a Igreja de não se identificar com o seu Mestre. São os modernos protestantes, católicos protestantes que, como os primeiros, professam e dizem o Credo da primeira à última palavra, perfeitamente ortodoxos em cristologia, mas que, para a Igreja, Corpo de Cristo, só têm palavras acres e odiosas. Andam sempre a refazer a Igreja, sempre à procura duma Igreja outra, incapazes de perceber a encarnação.
“O Verbo se fez Carne”. Na significação mais comum de toda a Escritura, quer dizer que “se fez Pecado”, conforme o que — sem medo de ser mal entendido — disse o Apóstolo na sua 2ª Carta aos Coríntios e na Carta aos Gálatas. Bem entendido, o Cristo Jesus não cometeu pecado, “não conheceu pecado”. Mas, aquele que “se fez igual a nós em tudo, menos no pecado”, “fez-se Pecado”, isto é, fez-se Homem, “assumiu o que somos, para que não ficássemos o que éramos” [Santo Agostinho, Homilia 293]. Jesus fartou-se de explicar de mil e uma maneiras o mistério do Reino de Deus. A História da Igreja tudo atualizou. Mas nem assim. A Carne de Cristo continua a chocar os homens.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 52 | Voz Portucalense, 18 de dezembro de 1986

Imagem: “O Cristo Amarelo” [1889] | Gauguin