Antes de mais uma advertência. Nós e os outros não é um traçado dum meridiano, mas a expressão das oposições que nos agrupam e nos confrontam uns com os outros. É evidente que temos adversários. Apesar de cristãos, porque cristãos, nós próprios somos adversários. Não somos inimigos; isto é, apesar de termos inimigos não podemos ser inimigos de ninguém, pois recebemos o mandamento de amá-los e abençoá-los. Não há meridiano, pois o maniqueísmo foi condenado pela Igreja e nos vastos campos do mundo semeados crescemos lado a lado. “Muitos que aparentemente estão dentro, de facto estão fora; muitos que aparentemente estão fora, de facto estão dentro”, como nos ensina Agostinho, doutor da Igreja. “Deixai vir o Senhor”, diz o apóstolo. Como ensinou Pio XII, o irenismo [desejo exacerbado de paz e de conciliação à custa duma sadia oposição de ideias e de opções] não é um bom ecumenismo. E, como se sabe de experiência histórica, o ecletismo [atitude filosófica que pretende estabelecer uma doutrina cujos elementos seriam escolhidos entre os sistemas que existem, uma espécie de “esperanto” ideológico] nunca funcionou como factor de unidade entre os homens, pois se “metemos tudo no mesmo saco”, só pela força e pelo desarmamento moral seria possível impor um critério unificador, em si próprio discutível e arbitrário, factor de novas divisões, de outras mais terríveis oposições e intolerâncias. Quando dizemos “nós”, temos obrigação de o dizer com o sentido mais fraterno e humilde possível, pela solidariedade das nossas fidelidades a Cristo, como das nossas infidelidades históricas de que somos herdeiros e cujas consequências ainda hoje nos marcam. Quando dizemos “os outros”, é preciso que o digamos com o maior respeito que — como adversários — nos merecem, ainda que errem na nossa óptica… o direito ao erro que nos ensinou Vaticano II. Não existe dentro da própria Igreja uma adversidade relativa? Não há entre nós “quaestiones disputatae”? Nos bons velhos tempos, que não nos maus velhos tempos, disputar não chegou a ser uma arte? Como ensinou o padre Lebret, conselheiro de Paulo VI, “na Igreja é preciso estar preparado para sofrer perseguição até da parte dos santos”.
O que é que faz que as matanças pelos espanhóis dos indígenas da América Central sejam mais repugnantes que o extermínio dos índios na América do Norte da parte dos colonos ingleses? O assalto ao ouro dos incas é mais grave que o furto das terras aos últimos moicanos? O grande terror da Revolução Francesa é menos horroroso que os autos-de-fé da inquisição espanhola ou portuguesa? A intolerância israelita face aos palestinianos, legítimos habitantes da Terra Santa, e as suas inúmeras vítimas nem sequer poupadas no desgraçado Líbano, não está provocando um holocausto? A monstruosidade da perseguição aos judeus pelos nazis é mais monstruosa do que os milhões de russos eliminados por Estaline, do que os milhões de chineses eliminados por Mao, do que os milhões de cambojanos torturados, massacrados e enterrados pela esquizofrenia ideológica?
O que é que faz com que os mártires protestantes da revogação do Édito de Nantes pelo católico Luís XIV não sejam comparados às vitimas católicas da repressão anglicana até 13 de abril de 1829?
Talvez não sejam só dois pesos e duas medidas, duas palavras e duas verdades, obra duma história mal contada, fruto típico duma ‘intelligentsia’ predominante e dum poder dominante na opinião pública e nos média. Também nós fomos peritos e soubemos usar aqueles dois pesos e duas medidas, as duas palavras e as duas verdades. Também “nós”, que não só “os outros”.
O que é que faz com que a nossa intolerância seja mais repugnante que a dos outros? Ainda bem que assim é! Talvez os outros esperem mais de nós do que aquilo que demos… quem sabe? Quem sabe se esta insistência na nossa inquisição de má memória está ainda à espera de uma declaração que não chegamos a fazer? Deitar as culpas para D. João III, o pio, mais agrava a responsabilidade de quem ainda há muito pouco tempo carregava com excomunhão os católicos que alugassem um salão ou uma simples garagem para um culto protestante; de quem ainda há muito pouco tempo olhava de esguelha os poucos judeus que teimaram em ficar entre nós, e nas preces de Sexta-Feira-Maior lhes chamava “pérfidos”. Estamos mais em vista? Talvez não tanto para que sejamos como os outros, mas outros, coerentes com o que somos e dizemos, e tantas vezes não fazemos.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 59 | Voz Portucalense, 19 de fevereiro de 1987
Pintura: Francisco Rizi [1683] | Auto-da-fé na Plaza Mayor [Madrid, 1680]