“De tal maneira Deus amou o Mundo que lhe deu o seu Filho Único” [João 31, 16]. É bom termos presente estas palavras no começo dum ano novo, mais um depois de tantos. Ainda há alguns anos falava-se da necessidade de uma nova síntese à maneira da ‘Suma Teológica’ de S. Tomás de Aquino, agora que uma série de reconciliações foram conseguidas entre a Igreja e o Mundo, ao nível da Ciência e da Fé, da Moral e da Ética, da Exegese e das ciências da Linguagem, etc. Em termos de Economia e de Política, o “rancor” moderno entre os “sociais” e os “religiosos” está a desvanecer-se. A Política já não mete medo à Oração e esta já não é encarada como alienação. Uma síntese é um olhar. Para termos as vistas de Deus, precisamos de lhe pedir aquele “colírio” recomendado à Igreja de Laodiceia [Apocalipse 3, 18], para nos ungirmos os olhos e recobrarmos o olhar convergente que tanta falta nos tem feito neste século. “Porque Deus não enviou o seu Filho para condenar o Mundo, mas para que o Mundo seja salvo por ele” [João 3, 17].
Não nos basta um azimute, o nosso ângulo de observação sobre o meridiano que pisamos. Precisamos de todos os azimutes. Quanto aos cristãos portugueses, pelo facto de termos perdido a vocação dos mares e da nossa posição periférica extrema-europeia, a necessidade de informação de “outros ângulos” é premente. Nem o nosso “romanismo” nos salvará, se não abrirmos os olhos, o coração e o pensamento, a uma “comunhão” mais vasta e mais completa, mais aberta. Outrora os portugueses viajavam muito, liam muito. Hoje outros viajam por nós, nossos “comissários”; outros leem por nós ou nos fazem ler suas leituras preferidas, leitores por procuração… Corremos hoje mais perigo de “provincianismo”, ao entrarmos para a Europa, do que no tempo em que nos diziam mal de tudo o que não era português. O perigo de “marginalização” é grande. Tão orgulhosos do nosso catolicismo que éramos! Será que nos manteremos católicos? Oh! não se fala no aspecto “confessional”, que esse não é difícil de manter. Mas no conteúdo “teológico” das nossas atitudes fundamentais face ao futuro.
Como é que nos temos servido da “sólida plataforma construída por dois mil anos de experiência cristã” [‘O Meio Divino’, de Teilhard de Chardin], nós que demos e recebemos mil e uma influências “aquém e além mar”? Parece que recolhemos ao rectângulo amargurados e ressabiados. Um país de “retornados”, uma pátria de retorno? Tanto ou mais do que outros países, tínhamos razões para possuirmos hoje um coração grande como o Mundo, pelo menos os cristãos portugueses tinham, sem dúvida. Parece que a única coisa que nos resta é o “folclore” e a saudade!… ou então a mesquinhice, complexo dos pequenos.
“Deste ponto privilegiado que não é o cume reservado a alguns eleitos, mas que é a sólida plataforma construída por dois mil anos de experiência cristã, podeis ver, muito simplesmente operar-se a conjunção dos dois astros cujas atrações diversas desorganizavam as vossas vidas. Sem mistura, sem confusão, Deus, o verdadeiro Deus cristão, invadirá, sob os vossos olhos, o Universo. O Universo, o nosso Universo de hoje, o Universo que vos espantava pela sua grandeza malvada ou pela sua beleza pagã. Deus o penetrará como um raio faz dum cristal, e far-se-á para vós universalmente tangível e ativo — muito próximo e muito longínquo ao mesmo tempo. Se souberdes acomodar o olhar da vossa alma, perceber esta magnificência, esquecereis vossos vãos temores diante da Terra que se eleva!” [‘O Meio Divino’].
Saberá a Igreja-que-está-em-Portugal ajudar os cristãos portugueses e, por contacto, os outros portugueses a relançar a nossa pátria nas grandes correntes em que convergem a Igreja e o Mundo? Esta é a hora da Economia? Pois que seja! Mas sem o “suplemento de alma” não há economia que não acabe em desastre, como nos aconteceu às riquezas da Índia e do Brasil. A Igreja-que-está-em-Portugal parece “à deriva” entre a religiosidade popular e algumas veleidades pastorais, assaltos de renovação logo desvanecidos, arranques e arrancadas tão esforçadas que logo se quedam no deus-dará, talvez um bocado à imagem do país político.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 54 | Voz Portucalense, 8 de janeiro de 1987

Pintura: pormenor de ‘As sete obras de misericórdia’ [c. 1606-07] | Caravaggio