Quando entre nós ainda se fazia História a golpes de imaginação e, para provar as boas razões do nosso messianismo sebastianista [nação predestinada a dominar o mundo para o pôr aos pés de Nosso Senhor], se criavam etimologias e se levantavam topologias bíblicas e proféticas, fantasistas e fabulosas, já em 1643 apareciam os dois primeiros tomos de ‘Acta Sanctorum’, em que o amor da verdade juntou o famoso grupo dos Bolandistas, jesuítas belgas que, sucedendo-se até aos dias de hoje, desenterram os tesouros da nossa Hagiografia por entre a poeira [e o lixo] das lendas ou legendas falsamente douradas. Os autênticos retratos dos Santos apareceram uns atrás dos outros na sua verdade encorajadora: estes homens e estas mulheres foram santos. Se com todos os seus defeitos, insuficiências e até grandes e muitos pecados, eles e elas foram santos, então, como diz o desorientado ex-amante de Sara ao ler o seu diário, onde acabava de descobrir que ela lhe fora roubada por Deus [em ‘O Fim da Aventura’, de Graham Green], também podemos dizer: “Porque se esse Deus existe, pensava eu, se mesmo tu com a tua lascívia, os teus adultérios e as tímidas mentiras que proferias, és capaz de mudar assim, então todos nós podemos tornar-nos santos, bastando apenas dar o salto, como tu o fizeste, fechando os olhos e saltando duma vez para sempre: se tu, que foste uma puta, és uma santa, não é muito difícil sê-lo”.
Quando ainda há pouco se fazia história — não só entre nós, mas em muitos países que se pretendiam progressistas e modernos — com os olhos enviesados e acríticos do cientismo jacobino ou marxista em que a verdade foi mais uma vez encadeada [Romanos 1, 18], desde a mais simples análise biológica, paleontológica, antropológica, até à ciência histórica posta ao serviço das novas apologéticas ideológicas; então entre nós, apesar da nossa sobejamente conhecida indiferença pela verdade, quase a roçar o obscurantismo, não temos muitas razões de nos intimidarmos diante da anticlerical ‘intelligentsia’ portuguesa, que não perde uma única ocasião de zombar dos Cristãos portugueses…
Havemos de falar de Migne, um homem que, com pouquíssimos recursos e com uma velha máquina impressora, pôs nas mãos de qualquer cura de aldeia e de qualquer leigo sedento das Fontes, o tesouro da literatura cristã mais fundamental dos padres gregos e dos padres latinos. Os duzentos e vinte e dois volumes da Patrologia Latina e os cento e sessenta e um volumes da Patrologia Grega são um monumento à obra de toda a sua vida. Que leem hoje os padres e os leigos? De que estão cheias as nossas livrarias? De águas diluídas… Não poluídas, mas isso não é o pior! Os velhos livros de devoção, missões abreviadas, foram substituídos por novas capas: cristianismo acessível, condescendente ‘ma non troppo’, entusiasta, juvenil, moral de bolso!… Vale-nos o Brasil e a nossa vizinha Espanha. Mas nem sempre o que vem do Brasil e da Espanha é o melhor que a reflexão cristã dos brasileiros e dos espanhóis produz.
É difícil de compreender o frenesim por uma televisão quando se vendeu a União Gráfica e se deixou ir por água abaixo o diário ‘Novidades’. O que não se conseguiu passar ao papel capaz de ganhar leitores vai conseguir-se a cores no pequeno écran? Será que já nos esgotámos sem sequer nos termos cansado?
Certamente que não é o deserto, ainda não é o deserto, e entre nós há muitos sinais de esperança, velhos trabalhos persistentes e iniciativas a esboçar-se. Não será preciso imitar a editorial Caminho, pois de panfletos e superficialidades estamos cheios.
Há lugar para tudo. Não devia haver lugar para a mediocridade. Mas a largura de Jesus Cristo até possibilita lugar à mediocridade. O mal é, como diz Bernanos, “quando o ponto de equilíbrio anda muito baixo”, porque, de resto, é preciso contar com tudo, avançar apesar de tudo.
Quando a gente sabe as possibilidades de trabalho dum homem como Jean Bolland, em meados do século XVII, descobrimos que no Reino de Deus não é preciso muito para se fazer grandes coisas. Basta o amor à verdade e um bocadinho de fé, “do tamanho dum grão de mostarda”. Basta isso. E bastava-nos perder a nossa lusa mania de trabalhar só. Um homem, por mais sozinho que esteja, encontra sempre companheiros. Não é preciso uma legião. Consta-nos que, neste momento, os Bolandistas são apenas cinco.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 40 | Voz Portucalense, 28 de agosto de 1986
Imagem: páginas do ‘Thesaurus Ecclesiasticae Antiquitatis…’ [Veneza, 1749].