O que é a ‘graça de estado’ dita tão necessária a todo e qualquer dos membros da Igreja, assim como a prudência exigida a todos os candidatos ou eleitos [?] aos ministérios presbiteral e episcopal? Não é a capacidade de agir em cada situação conforme a vontade de Deus e as necessidades e imperativos da hora? Os atos assinalados na História da Igreja, cujas atas nestes artigos sucessivamente temos analisado, revelam essa originalidade e, na sequência dos quatro Evangelhos, das Cartas dos Apóstolos, dos Atos dos Apóstolos e do Apocalipse [com que vigor!], manifestam uma atenção ao tempo presente, que não pode deixar de nos responsabilizar grandemente nos dias que correm.
Tentou o Vaticano II abrir a liturgia e o diálogo apostólico e pastoral à Atualidade, coisa fundamental à verdade e à eficácia dos Sacramentos, assim como ao testemunho da Ação. O que faz a atualidade da Caridade, da Fé e da Esperança, senão os atos de Fé, atos de Esperança e os atos da Caridade? A Graça em ação não constitui o ‘opus operatum’, ‘ex opere operato’ ou ‘ex opere operantes’ dos sacramentos e sacramentais da Igreja?
A eficácia da Oração não transforma os desejos, os votos, as decisões ou as conclusões, em resultados-atos de “dois ou três reunidos em nome do Senhor”, atualizando a sua presença real e conseguindo resposta sem demora para aqueles que “pedem, batem à porta, e procuram”?
Porquê, então, este medo terrível da originalidade? Porquê este sucessivo fechar a porta a intervenções criativas na Liturgia e na Ação? Porquê multiplicar cânones que, na melhor escola e tradição da Igreja, não deveriam passar de modelos provados e inspiradores da Oração-em-ato e da Ação avançada nas horas do Reino de Deus?
As orações-coleta do Missal Romano são lindas e constituem o exemplo mais acabado de tudo quanto dissemos em questão de Atualidade. A ciência litúrgica revelou-nos, em estudos muito profundos e completos, quanto de atualidade e criatividade foram capazes aqueles que naquele tempo presidiam às estações das assembleias celebrantes. Tenho pena de não me lembrar do nome daquela senhora holandesa que muito contribuiu para esses estudos, com a sua perícia em latim eclesiástico. Por alturas do Concílio e dos trabalhos das comissões litúrgicas que se lhe seguiram, dizia-se que era a grande [única?] especialista em latim eclesiástico. Extraordinariamente atuais e locais naquele tempo as orações-coleta, hoje não o podem ser. Mas porquê? Não houve crescimento teológico? A motivação pastoral hoje não é outra? Cada assembleia não exige sempre uma justificação introdutória da situação? Pois, se até as Preces Universais, que haviam sempre de ser originais e atuais, até essas são já objecto de pré-fabricação e de codificação!… Mas pronto. Estabeleça-se, já que tanto se insiste e tanto se cuida, imutabilidade naquelas fórmulas clássicas tão conseguidas e tão seguras. Não virá mal ao Mundo nem à igreja disso. ‘Lex orandi, lex credendi’. Teremos ali um tesouro sempre à mão. Mas não deixem que nos espaços e nos tempos livres abertos pela Constituição Litúrgica, novos formulários venham impedir a originalidade, a criatividade e a atualidade das horas sucessivas do Reino.
Há nos Atos dos Apóstolos [4, 23-31] uma ata que descreve o poder da Atualidade [da Fé em ação] duma assembleia apostólica em oração. Em qualquer das nossas missas seria difícil fazer tremer a Terra com tamanho poder da Atenção. A Atualidade ali cortava-se à faca, o que não acontece nas nossas missas tão formalizadas. Não se entenda este reparo como um apelo histórico a um qualquer renovamento, isso acaba também em formalismos… Mas é fundamental uma certa liberdade litúrgica, até para dar algum lugar ao Espírito Santo. Antigamente os bispos, porque estavam em toda a parte, eram eles que se encarregavam dessa atualidade, sempre em foco. Hoje são os presbíteros. Não se confia neles? Então por que motivo se investiu tanto na sua formação? Para os tornar meros executantes do que qualquer sacristão, à custa de ver fazer, não terá dificuldade em repetir se lhe der na real gana, ou se lhe apetecer fazer-se passar por padre em qualquer capela ou igreja desta cidade? É verdade que cada presbítero anda demasiado só, diante de comunidades-assembleias demasiado carentes. A criatividade litúrgica e pastoral implica presbitério [presbíteros em comunidade] e comunidades de forte densidade espiritual, e bispos menos separados de um e de outras. Mas não ponhamos a Liturgia num lado e a sua Graça noutro lado, como quem põe o ‘ramo’ num lado e o ‘vinho’ no outro.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 50 | Voz Portucalense, 4 de dezembro de 1986

Imagem: Catedral de Notre-Dame de Paris