A Leste a hora é de perseguição, uma perseguição tenaz e insidiosa, organizada, planificada. As notícias e a correspondência que nos chegam da Checoslováquia e do Vietname revelam-nos um esmagamento sistemático dos cristãos e, ao mesmo tempo, dão-nos o testemunho da sua coragem. Da mesma forma que nos primeiros dias, também nestes últimos dias os mártires não manifestam medo. Mas, enquanto a Leste é a perseguição, a Ocidente vivemos rodeados pela indiferença. Em meio mundo somos considerados altamente perigosos. No outro meio mundo perderam-nos completamente o medo, o interesse e o respeito.
O fenómeno da indiferença tem muitos matizes e particularidades, conforme os países onde a Igreja aí fez história. Ainda há pouco tempo era chamada de indiferença religiosa nos esquemas de sociologia, pois a análise assentava na quantificação da prática religiosa. É assim que a define a sociologia: “É um tipo sócio-religioso que não manifesta nenhum sinal de pertença à sua religião, não observa sequer os atos do conformismo, não mantém nenhum contacto, a não ser acidental, com a Igreja ou a comunidade cristã, pensa e conduz-se como um não católico, salvo na medida em que sofre a impregnação religiosa da própria civilização” [J. Chelini].
Hoje somos levados a considerar a indiferença — nas suas causas, nos seus efeitos e no seu conteúdo — não uma questão meramente religiosa, mas teológica. A crise veio demonstrar que a indiferença religiosa não passava dum verniz pudoroso que ocultava a tremenda religiosidade do homem moderno. Como se sabe, ou tinha obrigação de se saber, a religiosidade em si própria não é praticante, nunca o foi, pois é existencial por natureza e pertence à ordem da cultura. Fora de Israel e da Igreja, não há obrigações religiosas propriamente ditas. O caso do Islão apenas confirma o que dizemos, pois se constituiu como acabamento final das “religiões do Livro”, nós diríamos por “imitação” ou recriação.
Interessa-nos, por todas as razões, a indiferença entre os Portugueses. Porque nos toca de perto, temos mais possibilidades de a analisar em profundidade. Não se pode estudar a indiferença sem ter presente a diferença. E se esta é teológica, aquela também o é. Porque uma é em relação à outra. A indiferença não pode ser indiferente à diferença, sob pena de se negar a si própria. Ora a diferença tem a ver com o “carácter”, isto é: o carácter batismal que é teológico por natureza, da ordem da Graça. Parece que o “carácter” tem caracterizado muito pouco a diferença, para gerar em modos tão massivos a indiferença. De facto, os cristãos de profissão de fé não parecem tão indiferentes dos outros como se julgam, como se dizem, ou como os dizem.
Será que saturámos o nosso país de tal maneira que já não nos distinguimos dele nem ele se distingue de nós? Esta saturação não provocou um fenómeno de rejeição ao nível do inconsciente? Na medida em que a pastoral se acomodou aos costumes, todo e qualquer processo de mutação, passando pela ruptura, implica uma atitude ostensiva de indiferença em relação à Igreja que representa os costumes que se deixam. Mas ninguém deixa o pai sem a ele voltar, pois a “morte do pai” é apenas simbólica. Se deixar o pai, não deixa a mãe, não deixa a herança. Quer tudo isto dizer que, se exceptuarmos os nossos intelectuais desesperados, o regresso à Igreja de toda esta indiferença não constituiria nenhuma novidade, até porque a própria diferença não é muito grande. Só que o círculo, em termos teológicos, é vicioso, mais da ordem da natureza que da Graça. Portugal e a Igreja só escaparão a esta necessidade um do outro pela via da conversão, onde a diferença será consciente e não deste género tão clerical e tão anticlerical, tão surdo e tão falso, tão carnal e tão nacional…
Porque os padres representam todo o “paternalismo” [e maternalismo] duma Igreja que saturou um país inteiro, contra eles vão todas as expressões sociais, populares e literárias, daquela rejeição. Parece que não há país onde se diga tão mal dos padres como em Portugal, Agora até as próprias “beatas” dizem mal dos padres, pois lhes estão mudando os hábitos. Em termos europeus, a indiferença começou no Século das Luzes [XVIII]. Tem piada: o século XVIII não é o século de Pombal?
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 57 | Voz Portucalense, 29 de janeiro de 1987
Fotografia: Catedral de S. Patrício | New York