Entre os numerosos fantasmas que nestes dias apavoram as noites dos Discípulos da 25.ª Hora está a famosa Descrença mil-novecentista. Mas não passa dum fantasma, que uma boa terapia espiritual [espiritual de Espírito Santo] dissipará como a névoa duma manhã soalheira. Quem pretende — como se pretende nestes dias, nestas terras, e ainda bem! — ir ao Século em passos desassombrados de Evangelização não pode levar consigo tamanho equívoco. O que caracteriza os Modernos não é a sua descrença, mas o caos em turbilhão de crenças novas recalcadas e decalcadas sobre as velhas crenças das nações.
A conhecida alergia dos Modernos à metafísica e a sua vaidade posta nas extraordinárias descobertas da física não deveriam equivocar-nos nem intimidar-nos sobre o fundo da mentalização moderna, produtora de tantas crenças como o Mundo nunca viu até hoje.
O que devíamos era ter um pouco mais de respeito pela nossa Teologia, pois, apesar das suas formulações históricas fazerem já parte da linguagem e da cultura universais, não temos o direito de a pôr de rastos aos pés de quem a calca por outras razões, que têm mais a ver connosco do que com Aquilo em que realmente acreditamos [Mateus 5, 13].
Mas em que acreditamos nós? Aqui não é a árvore que esconde a floresta. A floresta duma multidão de crenças misturadas, em acumulações e estratos históricos sucessivos, é que esconde a Árvore, desde as raízes ao tronco e aos ramos, Árvore-da-Vida! Precisamos de definir? Andamos precisados de definições? Já vimos que em eclesiologia estamos a precisar de algumas definições. Não muitas, nem muito. O Concílio do Vaticano II fez bem em não querer definir. As melhores definições acabam sempre por dividir, separar e deitar pela borda fora muita gente. O essencial precisa de ser definido quando está em perigo ou quando as coisas começam a funcionar mal, como é o caso da colegialidade. Por outro lado, há definições que só serão possíveis quando o ecumenismo tiver conseguido a plena unidade das Igrejas. Doutra forma, cavaremos mais o fosso que já nos separa uns dos outros, não só em relação à Igreja Oriental e às Igrejas-da-Reforma, como entre as Igrejas que estão em comunhão com a Igreja de Roma.
Aquele em quem nós acreditamos é que é a referência e a norma de tudo quanto acreditamos. Ele, o Cristo Jesus, é o essencial. Ele é o objecto e o sujeito da nossa Fé. Aquilo em que acreditamos, essencialmente, é Aquele em quem nós acreditamos. Todo o Mistério da Igreja se define em relação ao Mistério de Cristo, razão por que o Concílio de Niceia se preocupou e se ocupou tanto do Mistério de Cristo. O que estava em jogo era fundamental. Nem as perseguições dos imperadores tornados arianos, nem a extensão da heresia que invadiu a maioria das Igrejas orientais, ao ponto de “toda a Terra gemer, surpreendida por se haver tornado ariana”, como nos informa S. Jerónimo, impediram a Igreja Católica e Ortodoxa, tornada minoritária, de ensinar e de proclamar nos concílios que partiram de Niceia: “nascido do Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstanciado ao Pai”. Quem? Ele, o Homem Jesus Cristo, Filho do Homem, Filho de Deus encarnado, “em carne a osso”, “para que os filhos dos Homens se tornem filhos de Deus”. Isto, Ele, é o fundamento, o Rochedo da nossa Fé. É n’Ele que acreditamos, e só acreditamos nas coisas que acreditamos em referência a Ele, pois Ele é a única norma de acreditar. “Ninguém conhece o Pai senão o Filho e aqueles a quem Ele o revelar”.
É verdade que acreditamos também em muitas outras coisas que é impossível definir e distinguir no meio da complexidade linguística, mental, social e cultural, complexidade que constitui, por força da ENCARNAÇÃO, o ser e o existir do Homem cristão e da própria implantação da Igreja em sistema aberto, católico, no meio do Mundo. Razão por que a Igreja nunca se preocupou em definir tudo, mas unicamente o ESSENCIAL e este só quando num aspecto ou noutro estava em perigo. A Reforma cometeu um erro quando pretendeu reduzir Jesus Cristo a Jesus Cristo, excluindo o Resto. E o Concílio de Trento, apesar de muitas definições, não definiu tanto quanto se quis e se julga. Se tivesse havido calma dum lado e doutro ter-se-ia conseguido o que, sem dificuldade, agora se conseguiu em encontros bilaterais: afinal, no ESSSENCIAL, parece que nada nos separa, a não ser palavras e mal-entendidos. Exceptuando as aberrações, os desvios, as práticas incorretas, tradições poeirentas e desfigurantes e modos claramente falsos de praticar, de dizer, de ser e de fazer, que mal vem à Igreja e ao Mundo se a nossa Fé cultivar imaginários e formulações locais, temporais, que constituíram ou constituem a dinâmica do Provisório? Confusão? Não, complexidade!


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 14 | Voz Portucalense, 6 de fevereiro de 1986

Pintura: “Le nouveau-né” [1645] | Georges de La Tour [1593-1652]