Há palavras que se estragam, palavras que nós estragámos. Palavras estragadas pelas coisas que se estragaram. Assim fizemos com a ‘caridade’, o amor excelente, que hoje ninguém quer e que todo o mundo detesta. Em língua portuguesa não é bonita a palavra ‘beato’ ou ‘beata’. Os tartufos deram cabo da palavra e da coisa apalavrada. Quando se diz que Edith Stein foi beatificada, que quer isso dizer? Mais nada do que isto: Edith Stein foi declarada feliz! Não foi a beatificação que a fez feliz, apenas a declarou feliz e a considerou digna de louvor e veneração entre aqueles que a conheceram, permitindo que ela tenha o seu ícone entre os Santos. A canonização, quando se fizer, se se fizer, recomendá-la-á ao culto da Igreja Universal. Daqui em diante, Edith Stein será lembrada entre os felizes e entre os glorificados. A beatificação e a glorificação não lhe dá a felicidade, reconhece-a!
Em certos meios judaicos parece que desagradou a beatificação desta judia convertida à Igreja Católica. Mas, de facto, Edith Stein não foi beatificada por ser uma judia convertida a Jesus Cristo. Milhares de judeus se converteram ao longo de séculos e não serão, por isso, beatificados nem canonizados. A maioria dos Santos não chega a ser beatificada nem canonizada. Não chega, nem é necessário. Apenas uma pequena parte, pois a maioria de nós espera aquele dia glorioso em que ouvirá da própria boca de Cristo Jesus a beatificação: “Vinde, felizes, e tomai posse do Reino que vos foi preparado desde o princípio do Mundo”. Essa é a beatificação que todos esperamos. Estas algumas beatificações que até lá se processam na vida da Igreja — e a cujo processo obedecem a cânones estreitos e estritos — são um pouco conjunturais e locais, às vezes trabalho insistente de comunidades ou grupos que como que ‘obrigam’ a Igreja a abrir os seus dossiês às ‘escondidas no Cristo’. Edith Stein também não foi beatificada por morrer em Auschwitz. Quando ela foi presa e levada para a Polónia, foi metida no comboio da morte juntamente com cerca de mil judeus católicos, que morreram como ela e que não serão beatificados. Nos fornos nazis, além disso, não foram exterminados exclusivamente judeus. Basta lembrar o padre Kolbe. Esta beatificação não tem de irritar os judeus.
Deus nos livre definitivamente de todo o antissemitismo. Entre os homens religiosos de todo o mundo e de todos os tempos, os judeus hão de ser os nossos preferidos, os nossos mais amados, por todas as razões. Quando na Cadeira de S. Pedro se sentaram homens iníquos e nos reinos chamados cristãos surgiram príncipes cúpidos e ávidos de dinheiro, as massas cristãs — guiadas por falsos pastores — imitaram os carrascos de Jesus, promovendo perseguições e ateando fogueiras contra os judeus que — durante séculos, até então — viveram sem quaisquer problemas ao lado das comunidades cristãs. Alguns exageros oratórios de certos santos fundamentaram o que não poderia ter qualquer fundamento. E não venham certos historiadores justificar ou explicar a intolerância católica com a violência e a mentalidade daqueles tempos. Em relação ao Evangelho, toda a violência ou fanatismo dos cristãos é que constitui um anacronismo. Porque o Evangelho é anterior e julga antecipadamente o que depois se fez. Quanto aos defeitos dos judeus, nós devíamos estar calados, nós que fomos para a América, para a Ásia e para a África [até à África do Sul!] carregados de racismo branco, civilizado…
Mas Edith Stein não se converteu do judaísmo ao cristianismo. Ela converteu-se do ateísmo a Jesus Cristo. Quando Jesus Cristo a encontrou e ela bateu à porta da Igreja, estava na fase do ateísmo. O que parece que fez com que a Igreja a notasse — e agora a beatifique — foi a dificuldade da sua conversão e o alto, profundo e largo nível da sua fé vivida e testemunhada até à morte. Edith Stein era uma intelectual. A sua conversão foi muito difícil e penosa, como acontece com todos os intelectuais convertidos. Como os ricos e como os poderosos, os intelectuais andam dominados pela Vaidade que, para todos eles, é como uma droga que lhes apazigua a inquietação. Uma ideia de superioridade em relação aos outros homens os mantém prisioneiros de si próprios. Edith Stein ficou chocada quando soube que a sua amiga Hedwig Conrad-Martius se havia convertido. Não era ela a mais superficial do grupo, a ‘boneca’? Uns dias passados na companhia da amiga mais a chocaram. O que levou Edith Stein a ler a autobiografia de Santa Teresa de Ávila encontrada na biblioteca de Hedwige? Simples curiosidade? Há curiosidades significativas e… perigosas! Durante toda aquela noite, Edith devorou o livro. De madrugada fechou-o e disse: “É verdade!”. Preparou-se sozinha para o Batismo, que recebeu em janeiro de 1922. Foi crismada no dia 2 de fevereiro do mesmo ano. Efetivamente, entre todos os homens religiosos, os judeus quando encontram o Cristo Jesus quase não precisam de preparação. São os mais preparados, pois é todo o Antigo Testamento que os tem preparados. Há quem diga mal do ateísmo e que o ateísmo é o mal do século, mas não tem sido ele que tem rebentado os muros destes mundos fechados? Deus sabe ‘escrever direito por linhas tortas’.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 67 | Voz Portucalense, 7 de maio de 1987