No duplo movimento que levou a Igreja ao encontro dos Bárbaros e que os atraiu ao seio da Igreja, por entre choques e aproximações, a pastoral gregoriana [do papa S. Gregório Magno] acabou por se impor e, de tal maneira, que fechou uma época no Ocidente — a da chamada Antiguidade Cristã — e inaugurou uma fase nova na vida e na história da Igreja. Nomes não faltam — sobretudo os adjetivos, à falta de melhor — para classificar a aventura da barca [1 Pedro 3, 20] sobre outros mares ou o mergulho do peixe [o Ichthus] para águas altas e profundas. Fase constantiniana? Ou gregoriana? A política foi constantiniana, pois todos os reis ou reinetes pagãos cristianizados [ou romanizados?] pretenderam a herança de César até aos nossos dias, kaiseres e czares aos montes: etimologicamente e não só, uma e a outra palavra vêm de César. A política, até a eclesiástica, foi constantiniana, mas a pastoral, essa, foi até aos nossos dias gregoriana. Depois das duas últimas guerras e do Vaticano II, apesar dos saudosismos e de tantos passos para trás, a herança de Constantino está definitivamente enterrada tanto na Igreja como no Mundo, e a nossa pastoral tem diante de si os Modernos [outros Bárbaros? ver-se-á!].
Das comunidades de Lousada têm vindo na ‘Voz Portucalense’ umas reflexões pastorais como já não se via há muito, umas interrogações capazes de entre nós abrir caminhos novos e sugerir soluções modernas, inovadoras. Com a condição de o debate não ficar entre os padres, nem entre as elites laicais. Laicais? Não tanto como se gostaria. Ai, que saudades da Ação Católica! Estas elites que agora se querem laicais estão mais clericalizadas do que julgam, ou do que se julga. Mas, para se pôr em termos corretos as dificuldades, necessidades e possibilidades da hora, é preciso saber-se bem [ai a nossa memória!] donde viemos. O texto que se segue ilustrará muito bem o nosso contexto: “Destruam-se unicamente os seus ídolos e nos seus templos, se são de boa construção, faça-se aspersão com água benta, coloquem-se neles altares e relíquias, mudando-lhes simplesmente a utilização. Onde se efetuava o culto dos demónios, passa-se a adorar o verdadeiro Deus. Assim o povo, vendo que os seus lugares de culto não são destruídos, esquecerá os seus erros e, tendo adquirido o conhecimento do verdadeiro Deus, virá adorá-lo nos mesmos lugares onde os seus antepassados se reuniam. E, porque eles tinham o costume de sacrificar um grande número de animais em honra dos demónios, nada se deve mudar quanto aos seus costumes nos dias de festa: assim, no aniversário da dedicação ou nas festas dos santos mártires cujas relíquias repousam na igreja, que eles acampem à volta da igreja, como faziam à volta dos templos pagãos, e celebrem a festa com banquetes religiosos […]. Permitindo-lhes assim da mesma forma a exteriorização da sua alegria, serão mais facilmente conduzidos a conhecer a alegria interior, pois não duvidemos que é impossível duma só vez tirar todos os vícios a almas tão rudes. Não é com saltos que se sobe uma montanha, mas a passos lentos [S. Gregório, ‘Cartas’ XI, 56, anos 590-604].
Depois desta pastoral, vingaram aquisições muito ricas e interessantes sobre o ponto de vista cultural, e sobretudo pastoral. Foram soluções construtivas, pedagógicas, à boa maneira de Jesus Cristo, que nos ensinou a “não quebrar canas rachadas nem a apagar tochas fumegantes” e a “não meter o Vinho Novo em odres velhos”, nem “a coser pano novo em roupa velha”. Foi muito pedagógica a pastoral gregoriana, tanto mais que se lidava com populações já batizadas extremamente gregárias, em que as conversões se davam em massa e onde os atavismos eram mais fortes do que os hábitos das populações urbanas gregas ou romanas. Também vingou um certo sincretismo que faz as dores de cabeça de quem se preocupa não só com a largura do Mistério de Cristo, mas sobretudo com a profundidade e a altura. A Boa-Nova chegou a todo lado. Não há vale nem montanha, lugar ou lugarejo, aldeia ou cidade, praça ou serra, que não tenha as suas festas religiosas sob o nome dum santo ou duma santa, que substituíram o orago pagão e idólatra, segundo o método gregoriano. Assim não há hoje freguesia sem padroeiro, oratório ou capela sem a sua dedicação a este ou àquele santo; não há igreja nem capela sem a sua festa e os seus romeiros, muitas vezes nos mesmos sítios onde se ofereciam sacrifícios e oferendas aos ídolos, e onde se pagam promessas…
E agora? Agora que a Boa-Nova chegou a todos os lados, não é tempo de ganhar altura e profundidade? O que Jesus disse à Samaritana e, por ricochete, aos Judeus [João 4, 5-42]… não é tempo de o dizermos em plena romaria? Sim, a festa é religiosa, ou então não se aguenta. Ou então é feira ou noitada, como o S. João. É impossível uma catequese sobre a festa, uma pastoral com as multidões do Evangelho?


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 38 | Voz Portucalense, 31 de julho de 1986

Pintura: ‘O Concerto no Ovo’, 1475-1480 | Hieronymus Bosch [c.1450-1516]