A propósito do debate na Igreja Anglicana, sobre a ordenação das mulheres, a correspondente do semanário Expresso em Londres, ao referir-se às consequências ecuménicas em relação à Igreja Católica, anda a ver dogmas a mais. Qualquer pessoa minimamente informada, dentro e fora da Igreja, sabe que o celibato dos bispos e dos presbíteros não é um dogma. Nunca o foi e nunca o será. É uma prática inspirada no Evangelho e fundamentada na tradição, mas não é um dogma. Nem será obstáculo à reunião das Igrejas que, neste capítulo, tenham disciplinas diferentes. Fosse esse o único obstáculo e há muito a plena comunhão eclesial já estaria restabelecida entre a Igreja Anglicana e a Igreja de Roma.
Em relação à história do celibato dos padres nem propriamente se pode falar de uma lei. O que aconteceu — e acontece ainda — é que a Igreja Latina deixou há algum tempo [!] de ordenar homens casados, porque a prática apostólica nunca consentiu normalmente no casamento de homens ordenados solteiros.
Os cânones 6 e 7 do Concílio de Latrão II [1139] constituem a primeira legislação da antiga prática que não consente o casamento de presbíteros e bispos, incluindo os diáconos: contra a introdução dum novo costume, declara nulo o casamento de homens ordenados solteiros. Mas, de facto, a partir desta data e durante séculos, a igreja continuou a ordenar homens casados, conforme menciona o cânone 14 do Concílio de Latrão IV [1215], que se refere aos “ministros que, segundo o uso dos seus países, não renunciaram aos laços dos matrimónio, têm direito a viverem legitimo casamento”. A tendência na Igreja Latina para a ordenação exclusiva do homens solteiros acabou por se generalizar e por se impor. A provar que foi mais uma prática do que uma lei a fazer vigorar o celibato do padres entre os latinos, está a míngua de legislação nesse sentido. Além dos cânones 6 e 7 do Concílio de Latrão II, que declaram nulo o casamento de homens ordenados solteiros, é preciso chegar ao Vaticano II para ler em letra de forma: “O celibato foi imposto por uma lei da Igreja Latina” [Presbyterorum ordinis, 16].
De facto, o que aconteceu é que na Igreja Latina se deixou lentamente de ordenar homens casados. E nunca se consentiu o casamento de homens ordenados solteiros, nem dos ordenados casados que, entretanto, tivessem enviuvado. Foi uma prática geral que se impôs, somente quebrada pelas Igrejas saídas da Reforma e pela Igreja Anglicana, o que em termos ecuménicos vai obrigar — quando chegar a hora — a debater e a repensar a questão, à luz da experiência de cada Igreja e à luz dos progressos e necessidades da vida moderna.
Falar do celibato em termos dogmáticos é uma injustiça que se comete em relação aos presbíteros casados das Igrejas Orientais, em plena comunhão com a Igreja de Roma. Essas Igrejas são tão católicas como as nossas e esses presbíteros são tão padres como os nossos. O elogio do celibato é uma coisa, outra coisa é a santidade do casamento que coexistiu perfeitamente durante mais de um milénio — tanto no Ocidente como no Oriente — com a santidade exigida a presbíteros casados. E se para justificar esta prática — tão legítima como a outra — é preciso ir à Escritura, então… estamos conversados: o Apóstolo, em todas as suas cartas, refere-se aos ministros da Igreja como gente normalmente casada. A ordenação dos diáconos casados vai abrir a porta à ordenação de presbíteros casados na Igreja Latina? Foi sempre a necessidade e a experiência, a prática, que introduziram mudanças disciplinares. Não é uma questão de tese, ou de dogma. A ver vamos! Está fora de questão o valor do celibato livremente escolhido. Supõe-se que os padres latinos, ordenados solteiros, escolheram livremente. O celibato só tem valor como atitude e ato livre. Nos casos em que não houve essa liberdade, por mil razões, os próprios têm obrigação de repensar a sua ‘vocação’ e a Igreja não lucra nada em reter homens que não foram nem são nem livres…
São como as cerejas as questões ligadas a esta questão e em poucas linhas não se pode abordar todos os aspectos, mas quando o bispo de Londres [anglicano] justifica a sua oposição à ordenação de mulheres para o presbiterado, os seus argumentos [para além do argumento ecuménico] são tão confusos!… Diz ele que “Deus encarnou um corpo masculino…”. É verdade que Cristo é homem-masculino, mas a identificação com o Cristo Jesus não se dá na ordenação. Esta plena identificação dá-se no batismo e inclui tanto o homem como mulher. Muita tinta há de correr ainda…


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 61 | Voz Portucalense, 5 de março de 1987
Pintura: ‘Vocação de S. Mateus’ [1599-1600] | Caravaggio