Não há qualquer fatalidade nos conflitos hierárquicos, nem o poder apostólico na Igreja é um sistema de freios ou uma espécie de administração para regular a liberdade dos filhos de Deus. Se algumas vezes, ou até muitas vezes, o ministério apostólico dos bispos se tornou inquisitorial e censurador no melhor ou no pior dos casos, pode ter havido virtude ou pode ter havido vício, mas é da natureza do poder apostólico ser renovador, encorajante, confirmante e avançado. Não é fatal, nem é da função, ser retrógrado, frustrante, manietante ou repressivo. Como todos os outros cristãos, os bispos têm o seu modelo em Jesus Cristo, que nunca foi atrás, mas à frente. A prudência que os escolheu e os recomendou não é da Carne, mas do Espírito. Como nos bons velhos tempos, a geração dos bispos do Vaticano II está nestes dias a dar provas de coragem e desassombro apostólico.
Serve esta introdução para prevenir o que aconteceu a Jacques-Paul Migne. Ele teve dificuldades com a Hierarquia. Soube não fazer disso um drama, nem tropeçou nas dificuldades, mas — apesar das limitações da época — avançou para um terreno onde poderia semear e colher frutos “contra os quais não há lei”, conforme diz o Apóstolo na Carta aos Gálatas [5, 22]. Que seria de nós hoje se Migne tivesse esbarrado na primeira dificuldade? Presbítero da Igreja, ele quis intervir no meio da confusão provocada pela Revolução de Julho. O seu primeiro livro — ‘Sobre a Liberdade, por um Presbítero’ [‘De la liberté, par un prêtre’] — viu a publicação proibida pelo bispo de Orleans, que o condenou sem o ter lido!… Sentindo-se encurralado na estreiteza [de então] do ministério paroquial, pediu e obteve o seu “exeat” e entregou-se apaixonadamente aos trabalhos editoriais. Foi o princípio duma obra que marcou o século XIX. O mais espantoso é que Migne era considerado pelos seus colegas como um homem sem cultura. Sem dinheiro, sem relações, mas dotado duma grande coragem, com trinta anos apenas, ele chega a Paris e lança as bases dum trabalho editorial que não tem paralelo nem na Igreja, nem no Século.
Todo o projeto de Migne era pôr nas mãos dos padres e dos leigos, sedentos de instrução, os tesouros da Igreja, realizar a palavra de Jesus: “Todo o escriba no Reino de Deus tira do seu Tesouro coisas novas e antigas”. Entristecia-o o baixo nível das bibliotecas dos padres e a míngua de literatura cristã para os leigos. Apostou que lhes havia de pôr nas mãos o melhor do Tesouro. Multiplicou as iniciativas. De 1836 a 1846 ‘O Jornal dos Factos’ e ‘A Voz da Verdade’. De 1854 a 1857, os jornais ‘A Verdade’ e ‘O Correio de Paris’. Para aguentar economicamente as publicações, deitou mão da publicidade, ao ponto de imprimir publicidade até nas margens do papel de carta. Sobre Migne escreve um outro grande empreendedor do nosso tempo, Adalbert-Gautier Hamman: “Migne é da Igreja. […] As incompreensões e os conflitos com a hierarquia nunca abalaram a solidez do seu enraizamento espiritual. Ele sente-se investido duma missão: salvar o património da Tradição. É a sua maneira de servir a Igreja. Ecuménico numa época em que o facto é por demais raro para ser notado, Migne abre as suas coleções aos tesouros da Igreja oriental e ortodoxa, o seu curso bíblico aos exegetas anglicanos e protestantes. Chega a publicar uma obra de Jean-Jacques Rousseau. O editor não conhece nem ostracismo nem sectarismo. Ele é da Igreja” [ICI, n.º 480, p. 24].
Ainda não havia Larousse, nem a moda dos dicionários, e ele editava cá para fora 117 dicionários sobre uma vasta gama de especialidades, de 1844 a 1859, com o auxílio de obscuros mas competentes investigadores, Migne faz-nos pensar em Mendel, dois nomes que bastam para nos tirar o labéu e para fazer engolir o insulto do nosso atraso em relação ao Século.
Mas a obra maior de Migne, que o tornou conhecido como Lineu, foi a Patrologia: 222 volumes dos Padres Latinos e 161 volumes dos Padres Gregos. Ele ambicionava ir mais longe: publicar a melhor literatura cristã até ao Concílio de Trento. O incêndio da sua tipografia [que se julga de origem criminosa] pôs um fim a todos estes projetos. O seu desabafo ao olhar as cinzas, foi unicamente: “Que vai ser dos meus pobres operários?”.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 41 | Voz Portucalense, 11 de setembro de 1986
Imagem: pormenor das Portas do Evangelho
| Fachada da Paixão, Basílica da Sagrada Família [Barcelona]