A superstição acobertou-se à sombra da Igreja e assim tem subsistido há séculos, misturada com a religião da Fé, ao ponto de, por vezes, tomar a capa da virtude e conseguindo até enganar os santos que, para escapar a incoerências doutrinais, multiplicam prodígios de imaginação e de raciocínio, teologias de ocasião, cuja acumulação exige — de tempos a tempos — grandes e corajosas varredelas. Razão por que nas vidas dos santos — não aconteceu o mesmo em relação aos profetas e aos seus inscritos inspirados? — é sempre necessário distinguir o seu imaginário, e muitas das suas crenças, dos seus atos indiscutíveis de Caridade, de Esperança e de Fé.
Não é o caso de S. Cipriano, que não tem absolutamente nada a ver com magias e bruxos, nem antes nem depois da sua conversão: “Por volta do ano 379, Gregário de Nazianzo pronunciava o elogio do bispo mártir de Cartago [S. Cipriano]. Segundo Photios, a imperatriz Eudóxia, mulher de Teodósio, tomou-o pelo herói dum poema épico. De facto, Cipriano teve no Oriente muitos admiradores, mas não teve muitos leitores. Doutra forma não se explica muito bem a lenda que se formou à volta do seu nome. Apesar da sua vida nada ter de misterioso, atribuíram-lhe um poder sobrenatural. Tal como aconteceu ao seu compatriota Apuleu, fizeram dele um mágico. A lenda propagou-se e chegou ao Ocidente. Lê-se, com efeito, num poema atribuído a Isidoro de Sevilha: ‘Foi assim que Cipriano, depois de ter sido mágico, tornou-se bispo e mártir’. Sob o nome do bispo de Cartago, circularam livros de magia, entre outros uma recolha de fórmulas intitulada ‘Orações de S. Cipriano’. Muito cedo, no Oriente, a imaginação popular confundiu Cipriano de Cartago com o seu homónimo, o bruxo Cipriano de Antioquia. Fizeram deles uma única personagem, a quem se atribuiu uma vida errante e uma multidão de aventuras. Verificam-se, por outro lado, relações curiosas entre a lenda de Cipriano de Antioquia [o mago] e a lenda de Fausto, ao ponto de se fazer do bispo de Cartago um dos antepassados do doutor Fausto” [Paul Monceaux, ‘Histoire littéraire de l’Afrique chrétienne’, Leroux, 1902, p. 361].
Estas confusões execráveis e escabrosas só são possíveis pela herança mítica e animista que a Igreja arrasta ao longo do seu curso histórico. Israel emergiu — desde Abraão em Ur da Caldeia, desde Moisés em pleno Egito faraónico, e com os Profetas entre os povos de Canaã — de culturas idolátricas, míticas e animistas. Quanto à Igreja, atravessando as religiões das Nações, chegou até nós rodeada de sombras.
Também sobre o Diabo, nestes dias, tem havido as sempre inevitáveis confusões. Inevitáveis, mas escabrosas. É pena que na igreja nem sempre aproveite estas ocasiões para fazer progredir a Doutrina. É preciso que se diga e é preciso que se saiba: não foi Israel nem foi a Igreja que imaginaram o Diabo. Receberam-no das culturas e das religiões das Nações. Mas a nossa teologia sobre o Diabo não se confunde de maneira nenhuma com o diabo animista [ou espírita] das culturas que há séculos a Igreja fermenta. Em História da Salvação e ao nível da Experiência, a única coisa que nos fica sobre o Diabo é a dimensão misteriosa dos nossos pecados, crimes e erros. O que levou Santo Agostinho a dizer: “Esse angelos novimus ex fide” [“Da existência de anjos só sabemos pela Fé”]. Não é objecto de qualquer ciência experimental. Em relação aos anjos maus, num texto do IV Concílio de Latrão, o magistério da Igreja afirma que não há qualquer ser que seja mau desde o principio, que todo o mal tem um carácter finito e temporário, e provém do ato livre da criatura [D. 428]. Mas não se deve acreditar no Diabo? Jesus, que varreu a Terra dos seus demónios e nos mandou continuar poderosamente a sua obra, diz-nos que não devemos acreditar no Diabo [Mateus 4, 1-11], pois “não há verdade nele”, “mentiroso e pai da mentira” [João 8, 44]. Mas o Diabo existe ou não existe? O Diabo dos animistas e dos espíritas, o Diabo dos imaginários não existe. Não passa dum fantasma dos nossos medos ancestrais. Quanto ao Diabo que interfere no Mistério de Cristo, não há na Escritura elementos suficientes para se fazer uma demonologia, ou um tratado sobre o Diabo!…
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 42 | Voz Portucalense, 25 de setembro de 1986
Imagem: gárgula da Catedral de Notre-Dame de Paris
[ao fundo, a Basílica do Sacré Cœur de Montmartre].