Todas as ilusões são más; mas, como ensinam os santos, as piores de todas são as ilusões espirituais. São ciladas do diabo. As falhas da comunidade, como os desastres da família moderna, não podem ser preenchidas por ilusões, ainda que se chamem pastorais, sobretudo quando se chamam pastorais muito zelosas. “Não toquem na família!”. Já tocaram. Aliás a família andou sempre tocada, desde o princípio que anda tocada, ou não é ela o sítio do Pecado Original? Não tenhamos vergonha da nossa doutrina. “Quando as bocas se calarem, as pedras gritam”, avisou-nos Jesus. Aí está Freud a gritar o que nós temos calado.
Que a Igreja não tenha medo de ser oportuna e inoportuna, contra o Divórcio, contra o Aborto, etc. Quando a interrogarem “com que direito” intervém nestas questões declaradas da competência da consciência individual e/ou colectiva, a Igreja não deve dar uma resposta diferente da que deu Jesus. Isto é, não respondendo: “Também eu não vos digo com que direito faço isto!” [Mateus 21, 27]. Será que a Igreja é obrigada a responder a gente cuja hipocrisia nestas questões está patente em tantas atitudes contraditórias?
Mas a pastoral não devia agarrar-se tanto à família como se agarra nestes dias e entre nós. Pode-se dizer que a sociedade assenta na família. Pode-se até afirmar que a família é a célula da sociedade. A Igreja não. Esta não assenta na família, nem as famílias são as suas células. A família é que assenta na Igreja. Família Cristã? Não só. A família constituída por cristãos é cristã. E as outras famílias? A Igreja nos bons velhos tempos deu-se bem com as famílias mistas. Houve não poucos reinos que foram evangelizados através de famílias mistas. Através de casamentos mistos, muitas vezes a Igreja penetrou em meios onde não conseguiria penetrar doutra maneira. “O marido não crente é santificado pela sua esposa, e a mulher não crente é santificada pelo marido crente e os filhos serão santos” [1 Coríntios 7, 14]. Em cristandade as famílias todas [?] eram cristãs. Nas sociedades modernas, mesmo de maioria cristã, são poucas as famílias que se possam chamar cristãs em termos aritméticos. Se os pais são cristãos, os filhos não são ou deixaram de o ser. Não são poucas as famílias em que os filhos são cristãos enquanto os pais deixaram de o ser ou nunca o foram. Isto é, o pluralismo é uma característica universal de todas as sociedades e grupos humanos deste século. A Igreja não assenta na família, mas na adesão pessoal e livre da Fé. No Antigo Testamento, o Povo de Deus assentava na família. No Novo Testamento não assenta, “eles que não foram gerados nem do sangue nem dum querer da Carne, nem dum querer do homem, mas de Deus” [João 1, 13]. No Novo Testamento a família é que assenta na Igreja, como tudo o mais que unicamente pode ser salvo pelo regime da Graça.
Não abunda no passado uma reflexão teológica sobre a família e sobre as comunidades não monásticas ou conventuais. Este século tem a ocasião e o privilégio da primeira grande abordagem às questões da comunidade e da família, pelo acesso dos Leigos à ‘cidadania’ na Igreja. É nos autores leigos que podemos encontrar os santos destas questões. Maritain, com a sua mulher Raissa, e Mounier, dizem-nos mais que uma multidão de clérigos.
Escreveu Maritain: “Julgo que por vezes há um certo engano quando se imagina que a unidade duma comunidade cristã suprime o incomunicável e deveria ser concebida como uma espécie de ‘camping’ piedoso, onde as efusões afectivas se poriam sobre a mesa numa caldeirada fumegante de alegria familiar. Que mistério! Quanto mais nós éramos unidos, mais cada um caminhava só, mais cada um levava o fardo dos outros dois, mais cada um estava só ao levar o seu próprio fardo” [Maritain, ‘Carnet de notes’, Paris, Desclée de Brouwer, 1965].
A reconciliação passa pela Cruz. Mounier diz isso em palavras de fogo, em cujas brasas muito boa gente se recusa queimar: “É bom aprofundar os afectos, as alegrias naturais que nos damos, mas também as feridas que nos fazemos. Há feridas vãs, que provêm do choque dos egocentrismos, mas eu falo das outras, das que são necessárias para não viver na mentira e para se despertar mutuamente do sono da habituação” [Mounier, ‘Lettre à son père’, 1943].
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 53 | Voz Portucalense, 25 de dezembro de 1986
Imagem: ‘Cristo na casa de seus pais’ [1849-50] | John Everett Millais [1829-1896]