Num mundo e num tempo em que “a Humanidade se tornou legitimamente difícil”, a Igreja na sua realidade mais ampla e mais profunda percebe hoje — mais do que nunca — o sentido do Desígnio revelado em Cristo. As enormes possibilidades e necessidades do coração humano, em inteligência e amor, não têm outra saída que não seja a santificação, que constitui o verdadeiro êxito, plena realização ao nível da pessoa e da comunidade. A necessidade de realização já não se aguenta com critérios e sobre suportes mundanos. A enorme pressão que hoje se verifica a nível planetário, na ‘nooesfera’ [a esfera da vida humana] explodirá se não encontrar saída para a Matéria que se tornou Vida, para a Vida que se tornou Pensamento [‘nóos’, em grego], isto é, Liberdade. Os tiranos de todas as cores, assim como as instituições de todos os feitios, não podem conter por muito mais tempo aquela pressão. De crise em crise, a fractura agrava-se perigosamente.
Não se trata de repetir a experiência da Idade Média, multiplicando até ao infinito conventos e mosteiros, cuja criação naquele tempo teve — pelo menos — o mérito de ser um movimento livre e espontâneo dos povos europeus recém-convertidos ao Evangelho e não como nestes dias, em certos países, onde a pobreza, a obediência e a castidade são impostas autoritariamente pelo despotismo ideológico e/ou pela miséria. Trata-se de em sistema aberto, o mais aberto possível, em espaço livre, o mais livre possível, segundo os apelos da Natureza e as imensas possibilidades da Graça, realizar aqui, agora, a Comunhão dos Santos, que não exclui os Pecadores — comunhão que evidentemente não cabe neste mundo, pois tem a escatologia [os seus fins, finitude e finalidade] como meta.
Neste Êxodo — que não é de agora, pois teve longas preparações e universais convergências —, o movimento ascensional para o êxito, para a saída, no sentido da Cruz e da Ressurreição, processa-se neste mundo, deste mundo para um outro mundo, que o Apocalipse chama “Nova-Terra sob Novos-Céus”. No mais material dos mundos, onde — desde a Criação — nos foram dados todos os materiais para a edificação do Definitivo, bastar-nos-ão para a obra da santificação universal a Caridade, a Fé e a Esperança — as virtudes teologais, que constituem o estado-de-graça.
Com um daqueles gestos simples e eficazes de que só ele tinha o segredo, o bom Papa João XXIII conseguiu que a assembleia conciliar inserisse em constituição dogmática [‘Lumen Gentium’] uma declaração irreversível sobre a Vocação Universal à Santidade. Não era assim tão curial como parece. Então nestes dias… em que uma certa facção triunfalista e hierarquista parece impor os seus pontos de vista regressivos, até já não é assim tão evidente. Os apelos e as ordens sucessivas para que os padres e os frades voltem às suas reservas acentuam novamente a clivagem entre uma Igreja que é clero, reserva ou canteiro do Senhor, e a outra, ‘Igreja do Exterior’, que é e não é. A desorientação dos seculares, padres e leigos, não pode ser maior, pois a presença no Mundo, no Século, cada vez está mais sujeita a cauções, à delimitação dos campos. Contudo, este refluxo, aliás previsível, não deve intimidar ninguém. Os documentos conciliares aí estão com força suficiente para impedir estas e outras regressões ou endurecimentos. A igualdade fundamental de todos os Batizados e a vocação universal à Santidade são conquistas irreversíveis do crescimento teológico da Igreja. Não é por acaso que estão inseridas na constituição dogmática, ao lado da Colegialidade e da mais sã doutrina eclesiológica.
A santificação não é da ordem do sagrado nem está sujeita a reservas, que foram abolidas definitivamente por Aquele que na Cruz “rasgou o decreto da nossa condenação” [Colossenses 2, 14] e “destruiu o muro do Ódio” que separava Israel e as Nações, ao mesmo tempo que “o véu do Templo se rasgava pelo meio” [Lucas 23, 45]. O sagrado pagão multiplicava reservas e tabus, enquanto o sagrado da Lei segregava o Povo de Deus em canteiro, parte escolhida ou clero do Senhor. A santificação universal decretada em Cristo tornou caduca a Lei dos ‘apartheids’ espirituais e invadiu os bosques sagrados do Paganismo onde médiuns e pitonisas monopolizavam o acesso a Deus. Todos agora temos acesso a Deus com confiança.
Quem não se alegra e exulta com os apelos francos e diretos dirigidos por João Paulo II às multidões nas suas inúmeras viagens? Quem não se assusta com as reservas e as restrições assumidas por um certo neoclericalismo, espécie de fantasma de tempos perdidos?


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 46 | Voz Portucalense, 30 de outubro de 1986

Imagem: ‘Saint Joseph charpentier’ [1642] | Georges de La Tour [1593-1652]