Não é a procura duma palavra bonita para designar uma coisa triste, uma palavra difícil para camuflar a hipocrisia de práticas penitenciais rotineiras e formalistas. Quem procurar as fontes da Penitência encontrará a Metanoia nos seus princípios e nos seus fins, como nos seus meios. A refontalização pascal leva-nos — domingo a domingo, dia a dia, ano a ano — à Metanoia, processo permanente de conversão a nível pessoal e comunitário. Não foi mal escolhido o vocábulo latino “paenitentia” para traduzir o grego “metanoia” dos 4 Evangelhos. O escritor latino Círcero diz assim: “Memet mei paenitet” — “Não estou contente comigo”. A raiz da palavra “paene” ou “pene” não quer dizer ‘de alto a baixo’, ‘a fundo’, ‘completamente’? Todo o ser humano não anda dominado ou minado pelo desejo de um ‘ser outro’ depois de ter descoberto que não é a mãe, que não é o pai, que não é aquele que desejou ser, nem tem o que desejou ter? À procura de si próprio, sem saber quem é, anda o homem há muito tempo. Mas, de facto, toda a tradução tem sempre algo de traição, de palavras que atraiçoam o pensamento original. Razão por que, como S. Jerónimo, é preciso regressar às Fontes, às fontes da Fé e do Batismo, em peregrinação pascal. Não se trata de ‘ferver em pouca água’ com mais fervor! A diligência quaresmal deveria cada ano pôr os cristãos e as suas comunidades em estado de Conversão, fazer a Metanoia. Não que seja preciso esperar a Páscoa de calendário na mão para que isso aconteça. Tão-só porque a Páscoa deverá recolher e confirmar as conversões domingo a domingo, dia a dia, acontecidas no seio vivo da Igreja.
Também dentro da igreja, de dentro para dentro, acontecem e precisam de acontecer conversões. “Sou um católico espanhol que se converteu ao catolicismo”, ouviu-se aqui há alguns anos, entre nós, na representação da peça de teatro ‘A Muralha’. Converter-se ao que se é, tornar-se aquilo que se é, será — não é preciso ser bruxo para o adivinhar, basta ser profeta para o perceber — a história da Igreja entre os Portugueses neste dobrar do 3.º milénio, porque é impossível viver por mais tempo junto do Fogo sem se queimar. Mais tarde ou mais cedo a gente queima-se. Habituados à Igreja, habituados na Igreja, mais depressa nos queimaremos quanto mais perto estivermos. É este o ‘segredo’ da Igreja no meio daqueles que teimam em ficar dentro quando, pela sua maneira de estar, tudo fazia prever que saltariam fora… É este o seu segredo no meio das multidões que a procuram por outras razões…
É o caso típico de conversão de Bartolomeu de Las Casas, um padre — imaginem — que se converteu ao celebrar a Missa. Quando desembarcou em Cuba, em 1511, com a tropa de Hernán Cortéz, tinha no seu coração um só pensamento: tomar posse da sua “encomienda”. Durante doze anos havia sido cúmplice do genocídio perpetrado pelos soldados espanhóis nas Caraíbas. É ele próprio quem diz: “O clérigo Bartolomeu de Las Casas andava muito ocupado e muito solicito em suas granjearias, como os outros, enviando os seus índios do seu repartimento para as minas, a fim de extrair ouro e fazer sementeiras, e aproveitando-se deles quanto mais podia”.
Las Casas nunca antes imaginou o que depois lhe aconteceu. Rezador de missas, como milhares de padres do seu século, recebeu da parte de Diego Velázquez a encomenda duma missa com sermão. Quando oferecia o Santo Sacrifício, a leitura de Ben-Sirá [o Livro do Eclesiástico] pôs-lhe diante dos olhos este pedaço: “Sacrifícios de bens injustos são uma forma de zombar de Deus, pois as oferendas dos perversos não agradam a Deus. Oferecer um sacrifício com os bens dos pobres é como imolar um filho na presença do seu pai”. Foi o fim do velho Las Casas. Foi o princípio do novo Las Casas. A conversão. Foi a Metanoia, mudança completa interior com todas as consequências exteriores que se seguiram, foi a verdadeira Penitência, que apanhou o homem de alto a baixo. Nunca mais os Espanhóis e o seu Imperador Carlos V tiveram sossego, porque Las Casas devolveu a “encomienda” e a liberdade aos seus escravos índios, e correu da América à Espanha e da Espanha à América “a gritar em voz alta, sobre os telhados, o que lhe fora dito ao ouvido”. O facto de o doutorarem em Salamanca — e de o fazerem bispo — piorou ainda as coisas. Com ele nunca mais tiveram sossego. Graças a ele, o grande teólogo de Salamanca Francisco de Vitória produziu as primeiras afirmações do Direito Internacional, contra os interesses de Espanha e contra as pretensões temporais do Papa Júlio II que nessa altura andava muito entretido a fazer guerra e a constituir o estado da Santa Sé, a dar a S. Pedro um reino deste mundo.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 60 | Voz Portucalense, 25 de fevereiro de 1987
Monumento dedicado a Bartolomeu de Las Casas [Sevilha]