Por detrás da indiferença — com que a Igreja é rodeada neste meio mundo — também há argumentos que estão mais divulgados e subjacentes do que se julga e que no outro meio mundo [onde somos julgados altamente perigosos e perseguidos] são utilizados por todos os meios de propaganda que o poder põe à disposição dos seus agentes. Fazemos mal em subestimá-los, assim como não é nada cristã a falta de respeito com que costumamos tratar os nossos adversários. Um cristão tem adversários, mas não tem inimigos desde o dia em que o nosso Mestre nos mandou amá-los e abençoá-los. Todos os nossos verdadeiros inimigos são interiores, não são do exterior, pois “não lutamos contra seres de carne”… Mas aqueles argumentos [que a Censura eclesiástica abafou, reprimiu e pelos quais mandou muita gente para a fogueira em chamados reinos cristãos, que não foram mais do que as formas históricas das nossas tentações totalitárias], aqueles argumentos… tínhamos tanta necessidade de os ouvir! Não representam eles as dificuldades reais de acreditar de gerações inteiras nascidas e educadas nos joelhos da Igreja? Muitos daqueles argumentos podem ser frutos de equívocos e podem até estar repletos de sementes de violência, como por vezes se verificou; mas não representam menos a nossa própria carga de ambiguidade e falta de transparência.
O medo de perder o poder e o controlo das sociedades então geridas pela Igreja foi mau conselheiro, como todos os medos. O medo de perder acelerou a perda de tantos filhos da Igreja dentro da própria Igreja. Os séculos do “Grande Medo”, que desde os anos de mil e trezentos edificou os modernos muros do ódio e que nem as demolições das duas últimas grandes guerras conseguiram anular, antes acresceram, levaram as Igrejas a responder à indiferença com a indiferença, à hostilidade com a hostilidade. Não tivemos a coragem de os ouvir.
Manter hoje essa mesma atitude prejudicará gravemente a reevangelização do nosso meio. Aos apóstolos de todos os tempos são precisos a mesma coragem e o mesmo desassombro para falar como para ouvir. “Sempre prontos a responder a quantos nos interrogam sobre as razões da nossa Esperança” [1 Pedro 3, 15]. O apóstolo, quando nos recomenda que o façamos com amabilidade “contra os adversários”, di-lo num tempo em que o “passivo” da Igreja era ainda nulo, pois ainda se vivia na pureza das fontes. Mas não se reevangeliza como se evangeliza. Não se podem meter no bolso séculos inteiros como se nada tivesse acontecido…
Em “Actos e Actas” passaremos a ter sempre presentes os argumentos e as réplicas — e até os atos e as atas paralelos de quantos fazem história connosco, contra nós e/ou ao nosso lado. Tal como nos quatro evangelhos com Jesus, tal como o apóstolo desde que passou à Macedónia, tal como os missionários da primeira e da segunda evangelizações, tal como os doutores da Idade Média respeitada [há tantas “idades médias”…]. Não bastará coragem para os ouvir. Também será preciso desassombro, isto é: libertarmo-nos dos nossos próprios fantasmas e medos. Que consciência iluminada por Cristo pode resistir ao repto de Proudhon?: “A Igreja, se tivesse abraçado resolutamente a causa, teria sido sempre rainha e o coração dos povos teria permanecido com ela. Não se teria visto no seu seio nem heréticos nem ateus […]. Ninguém teria posto em dúvida a autoridade do sacerdócio ou a certeza da sua revelação. Ninguém teria sido induzido nessa dúvida pelo espetáculo das calamidades sociais, da tirania eclesiástica… V. Ex.ª Reverendíssima não vê, neste momento, que o Vosso rebanho se compõe exclusivamente de ricos e que aqueles que vos deixam são os pobres? […] Ó santa Igreja católica, apostólica, romana e galicana, Igreja na qual fui educado e que recebeu o meu primeiro juramento! Foste tu que me fizeste perder a Fé e a confiança.. Esposa de Cristo, redentor dos proletários, por que fizeste aliança com os inimigos de Cristo, exploradores do proletariado?” [Proudhon, ‘De la justice dans la Révolution et dans l’Église’].


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 58 | Voz Portucalense, 12 de fevereiro de 1987
Fotografia: Proudhon