Cronos ou Kairos? — o Mistério do Tempo
Muitas abordagens houve já ao Mistério do Tempo, e a última — a dos Físicos, depois dos Metafísicos e dos Psicólogos — é peremptória: “O Tempo é irreversível!”. Mas, ainda muito dominada pela Matemática, a Física não vai mais longe do que o número do Movimento, Tempo sem definição, sucessão irreversível de segundos, minutos, horas, dias, anos, séculos e milénios, cronológico ou cronometrado. Depois da magia do Tempo chegou a ciência do Tempo. Mas tanto uma como outra não escapam a ‘Cronos’. Tempo indefinido. Será que unicamente no mundo dos negócios, pelo ‘timing’, é possível definir ‘Cronos’: tempo-Dinheiro?! O Doutor da Igreja, Agostinho de Hipona, tenta desmascarar os adivinhos do seu tempo:
“O que agora claramente transparece é que nem há tempos futuros nem pretéritos. É impróprio afirmar: os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer: os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das coisas presentes, presente das coisas futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo noutra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se me é lícito empregar tais expressões, vejo então três tempos e confesso que são três. Diga-se também que há três tempos: pretérito, presente e futuro, como ordinária e abusivamente se usa. Não me importo, nem me oponho, nem critico tal uso, contanto que se entenda o que se diz e não se julgue que aquilo que é futuro já possui existência, ou que o passado subsiste ainda” [‘Confissões’, XI, 20].
O Cristo Jesus veio salvar todas as coisas, inclusivamente o Tempo, especialmente o Tempo, ainda que os religiosos-intemporais persistam em tirar a Igreja da humildade do Tempo. Como podem persistir no seu erro? Quando a Igreja os localizar há de desmascarar-lhes a falsa virtude. O Verbo de Deus aceitou temporalizar-se, entrar no Tempo para o definir. Mas há gente na Igreja que não aceita, que se cola ao Verbo como se ele não se tivesse feito carne, discutível e discutido como os homens. Esse monofisismo que tão desgraçadas consequências tem para a presença da Igreja no Mundo, e para o diálogo apostólico, há de ser desmascarado quando a Igreja estiver mais livre para o fazer. Entrando no Tempo, o Verbo de Deus que foi mandado ao Mundo e o Espírito de Deus derramado em nossos corações deram ao ‘Cronos’ o seu ‘Kairos’, o tempo-para, o tempo-de, tempos e momentos, uma outra economia que vence o fatalismo e a monotonia do Relógio, o tempo sofrido.
O que faz o Cristão é a sua consciência histórica, duma História da Salvação que acontece [não em vão] e que se faz acontecer em atos e atas. Não foi por brincadeira, nem foi por utilitarismo, que a Igreja interveio no Calendário e o encheu de tempos e festas, de domingos e férias. Mesmo que a sociedade civil não o tivesse aceitado, a Igreja teria o seu Calendário: “O Filho do Homem é senhor até do Sábado!”. “O Sábado foi feito para o homem, e não o homem para o Sábado!”. “Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus”. É grave, muito grave, a perda da consciência histórica. Sem ela, os Cristãos correm o risco de voltar ao tempo mágico ou, pior do que isso, de o transformarem em Dinheiro: ‘Time is money!’… Não. O Tempo é Graça, pelo ‘Kairos’, digamos pelo ‘timing’ que Jesus lhe introduziu. Onde está a festa da Ascensão? Será que entregamos agora aos Físicos e aos Astrónomos a contemplação do Mistério do Tempo? Não admiraria, pois já o fizemos em termos de ação, quando entregámos a Conversão do Mundo aos fabricantes de sociedades novas. Temos abdicado de mudar o modo de estar no tempo. o Mundo [o Tempo] é indigno do nosso amor? Esses não são os caminhos nem os pensamentos de Deus, “que de tal maneira amou o Mundo que lhe deu o seu Filho Unigénito”. Quando é que nos livramos do Maniqueísmo?
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 28 | Voz Portucalense, 15 de maio de 1986
Imagem: “Orloj” [1410] | Praga