Não foi Lucas o primeiro que deu a Jesus o nome do astro-rei. ‘Anatolé’, astro que traz a luz, é um dos títulos do Cristo no Antigo Testamento. Ainda há dias, na Novena de Natal, ouvimos Balaão: “Eu vejo, mas não para agora; eu percebo, mas não de perto: um astro saído de Jacob torna-se um chefe, um cetro se levanta, saído de Israel” [Números 24, 17]. Sol da Justiça, o Cristo Jesus tinha todos os títulos e direitos para entrar no Calendário e dominar o Tempo. Quanto ao modo, logo nos primeiros dias houve grande variedade, grande liberdade. Ainda não se falava de aculturação, mas já se fazia, já se praticava pastoral de aculturação. Porque é que temos hoje duas datas a celebrar a Natividade de Cristo, 25 de dezembro e 6 de janeiro, o Natal e a Epifania? A Epifania era o Natal da Igreja Oriental. A Igreja Romana, para aculturar no mundo latino, passou a celebrar o Natal a 25 de dezembro. Ato dum valor incalculável para o futuro, foi uma verdadeira invasão nos bosques-sagrados do Paganismo. Foi um ato missionário, uma atitude pastoral, que prosseguiu depois em todas as latitudes e longitudes até aos chamados ritos chineses, história triste duma cegueira e incapacidade dos Cristãos latinos. O Natal-de-Cristo-Sol-da-Justiça conseguiu destronar o Natal-do-Sol-Invencível? Isso é outra história, toda a história do afrontamento e diálogo entre a Igreja e o Mundo, a história das resistências à raça. Os dois natais, o da Morte e o da Vida, continuam a defrontar-se nestes dias. “Ainda no ano passado o meu pai era vivo!…” “Para o ano estaremos vivos?” Este natal das fortes emoções, que marca os anos que nos separam da morte e dos nossos mortos, enche de lágrimas a noite de consoada, exatamente a noite mais esperada do ano. Bem diferente, o Natal libertador, de Cristo, ainda não chegou a todo o lado com a sua alegria.
As atas do Natal de Cristo, a partir daquele ato bem deliberado no ano 354, já muitos natais escreveram! E não se esgotou a capacidade calendarista da Igreja. Aos graves problemas da vida moderna, soube a Igreja responder em termos de Reflexão e em modos de Celebração. Que era ainda há bem pouco tempo a passagem de ano? Um pequeno carnaval, herdeiro direto das saturnais que precediam o natal pagão e que a Novena de Natal conseguiu varrer. Fazer do primeiro dia do ano uma exortação à Paz, foi um ato que marcou o tempo natalício para sempre. Quer dizer que a Igreja é inimiga da alegria? Pensar isso é ignorância crassa, da mais estulta em termos de história. É uma recente calúnia que Chesterton, o apologeta do século XX, se encarrega de desmentir:
“Diz-se que o Paganismo é uma religião de alegria e o Cristianismo é uma religião de tristeza, mas seria tão justo como fácil provar que o Paganismo é a pura tristeza e o Cristianismo é a pura alegria… A alegria no Paganismo gira em volta dos factos da vida e não em volta da sua origem. Para o Pagão, as coisas pequenas são tão doces como os ribeiros que brotam das montanhas, mas as coisas grandes são tão amargas como o mar. Quando o Pagão olha para o próprio centro do Cosmos fica gelado. Por trás dos Deuses, que são simplesmente despóticos, sentam-se os fados, que são implacáveis… A alegria, que foi a pequena publicidade do Pagão, é o gigantesco segredo do Cristão. Os estoicos, antigos e modernos, orgulham-se de reprimir as lágrimas. Jesus Cristo nunca as reprimiu. Sempre as mostrou, claramente, a correr por aquelas faces francas, perante qualquer cena diária ou perante a sua terra natal. Havia, no entanto, alguma coisa que era demasiado grande para que Deus no-la mostrasse quando andou sobre a Terra. E eu tenho imaginado, algumas vezes, que essa coisa não era mais que o seu contentamento” [Ortodoxia].
Uma grande capacidade de festa aliada a uma grande seriedade, princípio da sabedoria, haveria de levar os Discípulos desta Hora a fazer do Natal de Cristo o tempo renovador do Ano. Uma pastoral do Natal? O Natal anda mesmo a precisar duma pastoral, pois anda a ficar entre nós cada vez mais triste, de ano para ano.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 9 | Voz Portucalense, 26 de dezembro de 1985
Imagem: “Natividade” [1644] | Georges de La Tour [1593-1652]