A doutrina Trinitária, elaborada ao longo dos quatro primeiros concílios ecuménicos [Niceia, Constantinopla, Éfeso — para o qual Santo Agostinho havia sido convidado, mas onde não pôde participar pois, entretanto, morreu em Hipona — e Calcedónia], representa a teologia das nossas dificuldades, razão por que os símbolos da Fé, sobretudo o de Niceia-Constantinopla, que nos serve cada domingo de texto para a Profissão de Fé, são mais históricos do que teológicos. São teológicos, isto é, normalizam a Fé, ou — melhor — balizam e avalizam a Fé; mas do Mistério de Deus não nos dão um conhecimento maior do que a Escritura nos deu. São históricos e muito, muito atuais, mais do que parecem à primeira vista. Quando denunciamos aqui os monofisitas, temos em vista as terríveis consequências pastorais que advêm duma exclusiva afirmação de Deus em Jesus Cristo. Deus é todo-poderoso e pode salvar-nos unicamente com o seu poder. Contudo, não foi assim que nos salvou, mas assumindo a nossa fraqueza, a nossa carne, a nossa humanidade. As dificuldades teológicas historicamente resolvidas pelos quatro primeiros concílios ecuménicos não deixaram de ser dificuldades e não deixaram de ser atuais. A morte do pai, assim como o filho em proveta e o recuo do sobrenatural na explicação dos felizes acasos, podem representar, para os nossos contemporâneos, progresso nisto ou naquilo, mas não eliminam as relações fundamentais entre os homens e a necessidade radical de Deus, nem obsoletam os nomes da nossa Esperança.
Por um lado, é preciso que se saiba — e que nunca se esqueça — que estes nomes [o Pai, o Filho, e o Espírito Santo] são verdadeiros, revelam-nos a verdade de Deus ‘in se’, em si. Aqui não há nominalismo. Mas, por outro lado, a verdade nos é revelada em relação a nós, ‘quoad nos’, dirigida a nós, às nossas necessidades e às nossas possibilidades. Por respeito de nós próprios e por respeito a quantos nos ouvem e esperam de nós “as razões da nossa Esperança” [1 Pedro 3, 15], deveríamos educar e cuidar a nossa sensibilidade e a nossa linguagem. É demasiado frequente cairmos no ridículo e na confusão de palavras e de ideias quando nos referimos ao Mistério de Deus, na sua indivisível Unidade e na sua Santíssima Trindade. Ainda hoje, os muçulmanos tropeçam no Filho, só porque Maomé teve a infelicidade de ouvir falar destas coisas da boca de monges fugidos às perseguições bizantinas e portadores das polémicas trinitárias. É curioso que Maomé aceite o Verbo sem dificuldade, mas recuse a ideia que Deus tenha um Filho, como se fosse um homem! — “Diz: Ele é o Deus único. Deus, o Absoluto. Ser que não gerou nem foi gerado, e nada há que se lhe assemelhe” [Surata 112].
É o eco das discussões bizantinas chegadas aos desertos da Arábia do Sul e das polémicas político-religiosas infindáveis — “Se tu perguntas ao cambista o valor duma moeda, ele responde-te com uma dissertação sobre ‘gerado’ ou ‘não gerado’. Se te informas sobre a qualidade e sobre o preço do pão, o padeiro responde: ‘O Pai é maior que o Filho, que lhe é subordinado’. Nas termas, quando perguntas se o banho está pronto, o gerente declara que o ‘Filho’ foi criado do nada. Não sei com que nome se há de chamar este mal, se frenesim ou raiva…” [Gregório de Nisa].
Faz lembrar as recentes disputas sobre a Teologia da Libertação: a boa, a má, a desviada, a influenciada, etc… enquanto o mundo se perde e a liberdade recua a olhos vistos dum lado e doutro da cortina de ferro.
Santo Agostinho observa atónito as discussões intermináveis entre os gregos e tenta, entre os latinos, perceber o fundo da questão para além da verborreia filosófica: “De facto, porque o Pai não é o Filho, porque o Filho não é o Pai e porque o Espírito Santo — que é chamado dom de Deus — não é nem o Pai nem o Filho, eles são portanto três. Razão porque está dito no plural: ‘Eu e o Pai somos UM’ [João 10, 30]. Não está dito: é UM; mas está escrito: ‘Somos UM’. E, entretanto, logo se pergunta: que são os três? Ou: três quê? Sofre duma grande indigência a linguagem humana” [De Trinitate V, 8, 10-9].
As especulações da inteligência são úteis, mas não vão muito longe no Mistério de Deus. Para a nossa devoção ainda não há nada de melhor que a linguagem bíblica afectiva e popular.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 29 | Voz Portucalense, 22 de maio de 1986
Pintura: “A Santíssima Trindade” [1577–1579]
| Doménikos Theotokópoulos / El Greco [1541-1614]