Anda nestes dias a Pastoral em trabalhos de descolagem dos velhos ‘sítios do pica-pau amarelo’, onde o imaginário cristão adoptou — na maior liberdade dos filhos de Deus — o que de melhor havia no imaginário pagão. Voltamos à História, voltou-nos o gosto e a exigência [da Esperança] de fazer História. Muito bem, ainda bem. O culto da Natureza agraciada havia-nos feito esquecer a História que se faz [a Atualidade] e perder a Memória [a História que se fez]. Agora a História que se pretende e a que se tem direito, pela natureza da nossa Esperança, não nos faça esquecer a Natureza. “A Graça não destrói a Natureza”. Cuidado com as gnoses de nome mentiroso! Não há nada como o desarmamento ferial para nos lembrar a Natureza. Ela aí está com o descanso, os divertimentos, os campos, as praias e as festas.
Uma das maiores glórias da Teologia Católica, que resistiu corajosamente ao purismo protestante, foi a defesa permanente e persistente da Natureza como vaso da Graça. Vaso de barro, mas vaso de Graça. Tantas vezes quase a roçar o pelagianismo, ou semi-pelagianismo, que Santo Agostinho tanto combateu e de que Lutero [agostiniano do hábito aos ossos] tanto criticou Roma, a Teologia Católica sempre defendeu as possibilidades da Natureza, as possibilidades e os limites.
Andam os ecologistas a lembrar-nos, às vezes de forma muito bizarra, que o Homem [que também é Natureza] se desnatura sem a Natureza. O mito da Natureza? Bem, há sempre esse perigo, como em tantas outras atitudes. E o panteísmo é a vertigem de todas as filosofias e religiões. Mas a nossa Fé não deve temer a Natureza, exatamente porque tem a vocação e a missão de a salvar para glória do seu Criador e para santificação dos homens. Há de dar-se — já chegou a hora — o regresso à agricultura. Se, entretanto, escaparmos à gula tecnológica e mercantilista, e se a multi e a interdisciplinaridade das ciências nos tornarem suficientemente sábios para respeitar a Natureza, esse regresso à agricultura nos curará daquele urbanismo que reduzia o clima ao frio e ao calor, solstícios reduzidos ao termómetro, sem folhas, sem flores e sem frutos, sem tempos e sem festas. Não que nos interesse restaurar a magia do São João e/ou os cultos da mãe-Natureza. Já o dissemos aqui. É preciso descolar para a Modernidade e é preciso ajudar os modernos a não regressar, isto é, não regredir. O nosso sobrenatural não é panteísta e também não é contra-natura. Sob pena de negarmos a dimensão sacramental da Graça, não podemos renunciar à Natureza, nossa natureza. Sacramento da Natureza! Ela é uma epifania de Deus, não ao modo da religião dos bosques-sagrados ou dos altos-lugares, mas ao modo da Fé. Santo Agostinho, que nunca foi agostiniano, que nunca partilhou o pessimismo de Lutero ou de Jansenius, mas que tantas vezes foi acusado de pessimismo sobre a Natureza, aí está outra vez a ser estudado — esperemos que — com maior isenção. Há uma certa perversidade em se valer dum autor, sem lhe ter lido todas as suas obras, sobretudo quando esse autor escreveu tanto e sobre tantas coisas que poucos se podem gabar de o ter lido na integridade. Digam lá os agostinianos se se reconhecem neste texto:
“Perguntei-o à Terra e ela disse-me: ‘Eu não sou!’. E tudo o que nela existe respondeu-me o mesmo. Interroguei o mar, os abismos e os répteis animados e vivos e responderam-me: — ‘Não somos o teu Deus; busca-o acima de nós!’. Perguntei aos ventos que sopram; e o ar, com os seus habitantes responderam-me: ‘Anaximenes está enganado; eu não sou o teu Deus!’. Interroguei o Céu, o Sol, a Lua e as estrelas, e disseram-me: — ‘Nós também não somos o Deus que procuras’. Disse então a todos os seres que me rodeiam as portas da carne: ‘Já que não sois o meu Deus, falai-me do meu Deus, dizei-me — ao menos — alguma coisa dele!’. E todos clamaram em grande alarido: ‘Foi ele que nos criou!’. A minha pergunta consistia em contemplá-los; a sua resposta era a sua beleza” [‘Confissões’, Livro X, 6].
Se há pessimismo em Santo Agostinho [que ele talvez até possa ter exagerado na sua luta contra os pelagianos] é sobre o Homem. E nisto ele será sempre um moderno, o que já não acontece com São Tomás de Aquino, todo penetrado de optimismo no seu saudável materialismo. Mas o que há em Agostinho de Hipona de pessimismo sobre o Homem é abundantemente compensado pelo seu optimismo sobre a Graça.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 33 | Voz Portucalense, 19 de junho de 1986

Pintura: pormenor de “O jardim das delícias terrenas” [1504] | Hieronymus Bosch [c.1450-1516]