De famoso a triste vai todo o tempo de um século que no número vinte, em algarismos romanos, se quis o símbolo do que há de maior e de melhor. Até aos anos cinquenta ou, mais rigorosamente, até aos anos setenta [onde se situa o Ano I da crise], não ser ou não querer ser do século XX constituía insulto ou provocava insulto. “Não és do século XX!” — era a referência para demarcar provincianos, bárbaros, selvagens e incultos. Os lugares poeirentos das bibliotecas e dos alfarrabistas estão cheios da literatura encomiástica, que fez o elogio do século XX. Os nascidos no primeiro quartel deste século consumiram e devoraram montanhas de papel e tinta, em letras e artes, vaticinando o mito nascente. Mito resistente, pois, apesar da depressão provocada pela guerra de 14, se viu reforçado em ferro e cimento armado acima das ruínas, sobre o sangue e o suor de imensas massas humanas proletarizadas e colonizadas por mais de uma maneira…
Mas o século XX não é alegre. Há cronistas que já se lhe referem, dizendo: “O triste século XX!…”. As duas pavorosas grandes guerras mundiais, devastadoras e mortíferas como nunca se viu antes, juntamente com uma multidão de incêndios cujos fogos ainda hoje ardem e cujos fumos os interesses das nações e dos blocos impelem ora para um lado, ora para outro, marcam para sempre em cores de morte e de tristeza um século que se quis famoso. Holocaustos, genocídios, hecatombes, fomes com a dimensão de continentes inteiros. Doenças e epidemias, frutos típicos e diagnosticados da poluição e da promiscuidade: florestas mortas, rios envenenados, ar irrespirável, vulnerabilidade biológica diante de vírus até aqui quase inofensivos. As pragas do Egito e a caixa de Pandora aberta já não conseguem dizer o Drama. Razão por que toda a gente anda a pensar no Apocalipse, ‘Apocalipse now’.
E, contudo, entre todos os homens, os Cristãos têm todas as razões para não pensarem mal, nem dizerem mal, do Triste século XX. Diz João XXIII: “Ter saudades do passado? Não temos saudades do passado. Só tem saudades do passado quem não sabe nada do passado”. Por estas ou por outras palavras — os pensamentos do bom Papa João apanhavam-se no ar como lufadas de ar fresco, em improvisos sempre imprevistos difíceis de registar —, o homem da primavera da Igreja nos quis dizer o que os atos e as atas da Esperança não desmentem. De facto, o século XX é o século das grandes conversões, entre os Cristãos e os Homens de boa vontade.
O século da Justiça Social, dos Direitos do Homem, da consciencialização a todos os níveis, da democracia, da liberdade descoberta como condição fundamental da dignidade dos homens e dos povos, é o XX, o nosso século. Em todos estes níveis avançou-se mais, muito mais, do que em séculos [e milénios] anteriores. Só os velhos amnésicos e os jovens tomados de debilidade mental são incapazes de ver e admirar “os progressos deste século”, como diria o Eça. Grandes e estrondosas conversações, durante séculos historicamente impossíveis de se darem, fizeram do XX o Século das Conversões. Apesar de muito debilitada ainda pelos seus próprios pecados e pelas perseguições que lhe foram movidas, a Igreja foi autenticamente invadida por vagas sucessivas dos netos e bisnetos do Século das Luzes [o XVIII], que a procuraram, como diz Gertrud von le Fort, “como quem quereria repousar nos teus braços durante um instante de esperança, tu que não és um albergue na margem do caminho e as tuas portas não se abrem para fora”. Aqueles que desesperam da Europa, como os que nestes dias continuam a desesperar, não sabiam o que diziam, desde o Tejo aos Urais, desde a Escandinávia aos Balcãs sempre abandonados aos turcos… Não está por fazer a história da resistência da Igreja Oriental à Interminável colonização muçulmana? Desde Paris a Londres e em salto até Nova Iorque, o Ocidente precisou de esperar pelo século XX para descobrir que o que lhe faltava era uma alma, pois corpo tinha e até demais, corpo monstruoso dos seus desenvolvimentos económicos e tecnológicos. Thomas Merton tem muito para nos dizer sobre isso, pois também ele provou das vinhas da ira, só que não azedou.
Século das Missões e do Ecumenismo, da constituição da Igreja africana negra, da formação das Igrejas da Ásia em número que se lhe perde a conta e do despertar incrível das Igrejas da América Latina. Século da renovação bíblica, da renovação teológica e moral, do movimento litúrgico, da Ação Católica, da JOC, da JAC e dos Padres Operários [evangelização dos pobres perdidos] e dum concílio que fez a maior revisão de Vida, que todos os outros concílios juntos, ao longo de vinte séculos não conseguiram fazer.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 51 | Voz Portucalense, 11 de dezembro de 1986
Imagem: II Concílio do Vaticano [1962-1965]