Não há como os medievalistas para nos fazerem crer na excelência da Idade Média. Em verdade, não tem a Igreja muitas razões para ter saudades daquele tempo, pois durante ele só teve tempo para mal digerir pedras e godos que as avalanchas bárbaras lhe enfiaram pela boca abaixo. Mas, em comparação com a Idade Moderna, se fosse preciso ter saudades, elas iriam no sentido das descobertas dos melhores medievalistas. Também não há como os maus historiadores para alimentar os preconceitos vastamente divulgados contra os tempos medievais, que constituíram a forja de tudo quanto na Europa são valores culturais indiscutidos. Mas todos os pretéritos são imperfeitos e, em História, quase todas as divisões são fictícias: os historiadores mais incontestados já não discutem a Idade Média, o que discutem é exatamente a chamada Idade Moderna, cuja existência põem em dúvida… pelo menos quanto à pretensão de modernidade! Parece que só agora estamos a encontrar os verdadeiros Modernos.
O que fez a Igreja durante a Idade Média aparece-nos agora em grandes quadros historiográficos, excelentes trabalhos de bons historiadores. De facto, desde a morte de Teodósio até à queda de Constantinopla [de 395 até 1453], a Idade Média não é a idade de ouro em que os Santos reinaram durante mil anos. Foi um tempo em que os Santos andaram por toda a parte, mas não reinaram. Durante esses mil anos houve quase sempre as melhores relações entre Santos e Pecadores, um sistema aberto como desejamos para o nosso tempo. Se alguém reinou foram os Pecadores, que chegaram a ocupar a Cadeira de Pedro. Os detratores da Idade Média foram sempre ignorantes, como ignorantes foram os que neles acreditaram, ao ponto de cometerem vulgarmente o anacronismo de acusarem a Idade Média de todos os males que aconteceram na Idade Moderna.
Com todas as suas misérias e grandezas a Idade Média não conheceu o ‘grande medo’, característico da Idade Moderna [do século XIV ao século XVIII] e que avança para a Idade Contemporânea, de revoluções que devoram os seus próprios filhos e que no triste século XX, depois de duas grandes guerras-holocaustos, atingiu com a bomba a expressão planetária de medo nuclear… Dramática modernidade, feita de medo e de tristeza, em que o pavor parece ter esgotado todas as suas formas históricas!
Se sabemos muito do que fez a Igreja durante a Idade Média, pouco sabemos do que fez durante a Idade Moderna. Isto é, se as Atas são mais abundantes, os Atos são já muito confusos… e nem sempre estes esclarecem aquelas. A mundanização da Igreja operada pela Renascença — não se pode pôr a pagã a um lado e a cristã a um outro, falsa distinção da má apologética — persistiu, apesar do Concílio de Trento e à sua sombra. Ainda aqui nos valem os Santos, mais uma vez, como luzes no meio das trevas, para podermos perceber que não foram, apesar de tudo, tempos perdidos. Se não nos entendessem mal, diríamos que foi o tempo da ressaca num mundo em que a Boa-Nova aparou o choque histórico dum paganismo ainda não resolvido e que a ingenuidade da Idade Média julgara ter mastigado no que ele tinha de melhor. Não terá sido o caso do Vinho Novo ter rebentado com os odres e o pano novo em roupa velha ter agravado os rasgões?!…
Está por fazer uma leitura atual e atualizada sobre a Cidade de Deus, depois da Idade Média. Quando a Teologia reencontrar a História da Salvação e for capaz de utilizar todos os materiais que até agora tem recusado, numa teimosia de tipo dogmático, haveremos de ver que, sem tronos, os Santos “reinaram durante mil anos”, mil anos que ainda não acabaram pois “mil anos aos olhos de Deus são como o dia de ontem”; para Deus “mil anos são como um dia, e um dia é como mil anos”. Depois de Cristo já não há dramatismo puramente pagão, não chega a haver modernismo sem as dores da expectativa da “manifestação dos Filhos de Deus”.
A gente não se devia deixar tomar tanto pelos pavores da crise. Não digo que voltemos à ingenuidade infantil da Idade Média, nem que nos deixemos aturdir com os mitos progressistas deste século. Mas, depois de Cristo, todas as nossas dificuldades são cristãs e, portanto, portadoras de Graça, abertas por enxertia à Ressurreição. Se os Padres da Igreja souberam ver a “alma humana naturalmente cristã” mesmo antes de Cristo, porque será que nós temos tanta dificuldade em ver no nosso século as germinações de tantas vastas sementeiras de que fomos os autores? Será que não nos reconhecemos nos frutos? Ou ainda andamos a sonhar com o 5.º Império do Sapato de Cetim?


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 22 | Voz Portucalense, 3 de abril de 1986

Pintura: “S. Francisco prega aos pássaros” [c. 1298] | Giotto [1267-1337]