Desde a fuga para o Deserto, de que Santo Antão — no Oriente — foi o animador, no século III, até ao monaquismo ocidental praticado nas Ilhas Lerins, no século V; antes e depois de São Bento, até aos modernos institutos seculares e às mil e uma fraternidades em que a presença no Mundo é regra; passa toda a história do monaquismo cristão e o relevo dum modo exótico de estar na Igreja. Tão exótico e extravagante que, para o defender e proteger — e nestes dias promover —, a Igreja teve que multiplicar elogios e apologias em forma. Fuga da Igreja mundanizada ou fuga do Mundo confundido com a Igreja? Não foi por acaso que o fenómeno e a questão pela primeira vez se puseram no Oriente, onde o Império convertido pareceu absorver a Igreja, invadindo-a em massa rapidamente.
A ambiguidade do Mundo é geradora de equívocos sem conta. Ambiguidade fecunda, apesar de tudo, pois nos força permanentemente a desfazer ideias feitas e a desertar os lugares-Comuns que se revelam, ao fim dum certo tempo, incapazes de explicar e resolver as nossas dificuldades. O drama das ideias feitas e dos lugares-comuns é quando se tornam instituições a que unicamente se pode escapar pela contestação ou pelo salto-em-frente. Até São Bento e depois de São Bento, quantos esforços e tentativas formuladas e reformuladas por um modo de estar no Mundo sem ser do Mundo, pela salvação do Mundo, para a santificação do Mundo!
A fuga para o Deserto, origem histórica do monaquismo cristão, tem qualquer coisa de pascal e atual. Constituiu um autêntico êxodo e chegou a ser uma Igreja-no-Deserto. Poderia ter sido um autêntico cisma, se a Igreja não acompanhasse do Deserto estes aparentes trânsfugas nostálgicos da Igreja-dos-Mártires. A procura duma saída na conjuntura asfixiante duma Igreja-Estado ou dum Estado-Igreja não tem hoje a sua réplica na fuga à Sociedade-de-Consumo? Não se fala hoje dum monaquismo laico?
Até sermos capazes de discutir o lugar Leigos e de falar dum regresso ao Mundo, quanto caminho não foi preciso fazer juncado de ruínas e de monumentos, de misérias e de grandezas?! O melhor das vidas dos Santos passou por ali, assim como o pior… É verdade que hoje sabemos que, para ser santos, não precisamos de abraçar os estados-de-perfeição; que, para ser irmãos, não temos que nos tomar frades ou freiras; que, para viver em comunidade, não somos forçados a entrar num convento; e que, para deixar o Mundo, não precisamos de sair do Mundo. Mas quem guardou — até à idade de o sabermos — os tesouros da santificação, da fraternidade, da comunidade e da suprema liberdade face ao Mundo?
Aquelas vocações sob mil e uma formas de vida monacal, conventual, de plena comunhão de bens, de obediência em Cristo e de castidade-liberdade, nunca serão obsoletas. O Evangelho lhes garante permanência e futuro. As classificações canónicas poderão ou deverão evoluir, simplificar-se, corrigir-se e até acrescentar-se, mas haverá sempre necessidade de reconhecimento da parte da igreja e de confirmação da parte das iniciativas apostólicas e espirituais, desde que se pretendam onde sejam espaços da Igreja, tempos-lugares-formas de vida em Cristo.
A maioria dos santos nunca viverá em mosteiros, conventos e comunidades religiosas. À maioria bastarão os compromissos batismais e uma vida simplesmente eucarística, em comunhão laical e comunitária com a Igreja local. Este modo secular de estar na Igreja, ou este modo eclesial de estar no Mundo, comum não só à maioria dos Leigos como à maioria do Ministros da Igreja — bispos, presbíteros e diáconos — não regulares, não inova um regresso ao Mundo. A única novidade nos dias que correm está na liberdade com que todos nos movemos e circulamos na Igreja e no Mundo: a atenção ao Mundo já não é mundana e a pertença à Igreja já não nos clericaliza. Quer dizer que se acabaram os equívocos? Não, apenas estão em vias de resolução histórica. Cada geração, cada hora, tem os seus ‘quiproquós’, afinal de contas geradores de fecundas descobertas: ao procurar uma coisa, encontramos outra. Não foi o desprezo do Mundo que nos fez regressar ao Mundo, Mundo outro? São Bento, ao querer tirar os pés do Mundo ganhou outros pés para ir ao Mundo e, de tal maneira foi, que a Europa o considera um dos seus pais.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 36 | Voz Portucalense, 10 de julho de 1986
Imagem: pormenor de ‘A nave dos loucos’ [c.1500-10] | Hieronymus Bosch [c.1450-1516]