Se as teologias da Redenção regrediram para os ritos, à revelia da paixão de Jesus, da sua cruz e do seu sangue derramado, isso aconteceu no cruzamento com as religiões dos Bárbaros, onde a Evangelização teve de dialogar mais com categorias religiosas do que com desenvolvimentos históricos. Mas, face a Israel e face ao Império, todos os atos e atas do Novo Testamento aqui estão, diante de nós, a atestar o Processo de Jesus. As leituras materialistas não valem mais do que as leituras espiritualistas, que não são muito diferentes das leituras espíritas ou animistas. Jesus não veio libertar os corpos e também não veio libertar as almas. Jesus veio libertar o Homem, os homens, a multidão [Marcos 14, 24]. De que os veio libertar? Dos pecados. Sim, foi dos pecados que os veio libertar, do Pecado do Mundo. De facto, a Páscoa dos Hebreus não explica a Páscoa do Cristo; preparou-a, mas não a explica. A Páscoa de Cristo é que explica e justifica a Páscoa dos Hebreus. Não se faz uma Teologia com as sombras. A Teologia faz-se com a luz. Não se faz teologia com as promessas. A Teologia faz-se com as realizações. A libertação maior e final é que explica e justifica as libertações menores e provisórias. Só o êxodo — êxito que é saída eficaz, realização sem frustrações — explica os passos das “alegrias e esperanças, tristezas e angustias dos homens deste tempo” [Gaudium et Spes, 1] e de todos os tempos.
Todas as religiões têm as suas cosmologias, antropologias e cosmogonias. E há muitas filosofias da História, tantas quantas as ideologias e gnoseologias que se reivindicam exatas e/ou científicas. Teologia da Libertação só pode haver uma, a do Mistério da Redenção. Cristo pode explicar Marx, a época de Marx, as ilusões de Marx, e talvez até os seus discutidos êxitos, como as suas miseráveis consequências. Digamos que os Cristãos, ao prosseguir com a sua Teologia da História, não podem fazer de conta que Marx nunca existiu, e excluí-lo das suas análises e sínteses. Não podem, tanto não podem que a Igreja que está em Cuba — como a que está na China — prepara-se para o difícil diálogo, ainda que as Igrejas que estão nos países onde Marx não reina ranjam os dentes!… Cristo explica Marx. Marx não explica Cristo, quer o aceite, quer o rejeite. Razão pela qual há erro em certas teologias da Libertação quando pretendem apoiar em Marx uma doutrina da ação. Cometem o mesmo erro daquelas teologias que se apoiaram nas filosofias e/ou nas ciências imperfeitas do seu tempo [“imperfeita é a nossa ciência!”]. A fragilidade do pensamento teológico de Santo Agostinho, de tão terríveis consequências para séculos, não esteve inteira na sua filosofia platonista? As estagnações e as degradações teológicas da Escolástica não assentaram todas nos abusos do aristotelismo — tomismo? Deus nos livre de oscilarmos neste capítulo, como noutros, entre o ultra-montanismo e um galicanismo que não têm nada a ver nem com a unidade da Igreja nem com a Colegialidade. As Igrejas que estão na América Latina não podem esquecer a experiência das Igrejas que estão na Europa dividida por uma ‘cortina de ferro’. E as Igrejas que estão na Europa não têm o direito de impor a sua prática teológica a todas as outras Igrejas. Por outro lado, as dificuldades que os Cristãos enfrentam em Cuba, na Nicarágua, na China ou na Polónia, não são as mesmas dos Cristãos que estão no Brasil, no Haiti ou nas Filipinas. Não são as mesmas dificuldades. Mas a Teologia da Libertação é só uma, a do Mistério da Redenção. Ou será que uma atitude ortodoxa na Polónia já não o é no Brasil?
Moisés diante do Faraó. Jesus Cristo diante do Sinédrio e diante de Pilatos. Três séculos de prisões, torturas, e comparências diante de governadores e tribunais da parte da Igreja dos Mártires. Joana d’Arc, diante de juízes-bispos que a condenaram a ser queimada. Thomas More diante da ira de Henrique VIII. Os cerca de 100 mil arrastados aos tribunais da Santa Inquisição ibérica, onde nós imitamos os carrascos de Jesus, de 1480 a 1834. As servidões, as opressões, os holocaustos, dos humilhados e ofendidos, todos os azimutes onde o poder e/ou o dinheiro mantêm em estados-prisões ou prisões-estados milhões de prisioneiros a morrer em guetos e gulags. Tudo isto é insuficiente para se fazer uma Teologia da Libertação? Que é preciso mais… se já não bastou o sangue de Cristo? Será que os ouvidos sensíveis do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob — “eu ouvi os gritos do meu Povo” — no Novo Testamento andam um bocado surdos? Será que agora só ouvem as rezas da beatice? O grito de Jesus no alto do Calvário não foi um verdadeiro grito? Uma libertação tão plena, tão grande, tão final, como é a Redenção de Cristo, se não contém em si as nossas pequenas libertações — de cada dia, de cada lugar, de cada tempo, de cada homem, de cada povo —, para que serve? Quando é que perceberemos que a Redenção está entre a Encarnação e a Ressurreição?
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 19 | Voz Portucalense, 13 de março de 1986
Pintura: “Campo de trigo sob nuvens de tempestade” [1890] | Vincent van Gogh [1853–1890]