Cada dia mais, à medida que a PESSOA em cidades livres e sociedades plurais aflora acima dos agrupamentos gregários ou coletivizados, e reaparece nas Igrejas ao nível da identificação com Cristo, identificação batismal, crismal e eucarística; cada vez mais a decisão de se confessar e de comungar é pessoalíssima, no fundo da liberdade de Consciência, a liberdade dos filhos de Deus, a liberdade dos Santos.
Para situar, contextuar, esta liberdade em termos teologais, precisamos de ter presente o princípio do Apóstolo, para a boa harmonia na Igreja: “Cada um examine-se a si próprio, e coma deste Pão e beba deste Cálice…”. Os últimos Discípulos reencontram a liberdade e a confiança da Fé, que vigorava, em relação à Eucaristia e a tudo o mais, entre os primeiros Discípulos. Em boa hora deixámos de ser aquela massa imensa de eternos penitentes, sempre de joelhos e obrigados, a partir do Concílio IV de Latrão [em 1215], a confessar-se ao menos uma vez cada ano e a comungar ao menos pela Páscoa, e uma vez confessados e comungados logo voltados ao estado-de-Pecado, à condição de Penitentes. Foram longos séculos em que até as freirinhas e os frades só poderiam comungar diariamente se obtivessem da Santa Sé uma licença especial. Tempos em que unicamente comungava o Padre celebrante porque tinha que ser, e o fazia a tremer. Tempos em que os Bispos multiplicavam pontificais-de-assistência onde eles não comungavam, onde só comungava o padre que para eles celebrava… Tempos de terror penitencial e eucarístico em que os Católicos ganharam medo a JESUS, tal como os Judeus tinham ganhado medo a IAVÉ. Foi o tempo da adoração ao SS. Sacramento colocado em tronos sempre mais altos, sempre mais inacessíveis: a solução encontrada pelos latinos em paralelo com a situação encontrada pelos Gregos, que tinham passado a celebrar a Missa por detrás das cortinas, como ainda fazem hoje…
Ainda com a memória fresca desta disciplina penitencial e eucarística, alguns [muitos?] acharão que hoje é uma bandalheira e que agora as pessoas pouco se confessam e comungam demais. O perigo da crítica fundamentalista [encratista] espreita-nos, a ameaça dos defensores da Lei contra a Liberdade dos filhos de Deus que, na Igreja Católica, é imparável e irreversível. Apesar de tudo.
Para não ceder à tentação integrista, obsessão judaizante do puro-e-impuro, precisamos urgentemente de voltar às verdadeiras fontes da Penitência, isto é, da Metanoia, de natureza substancialmente batismal, dentro de nós a Fonte que jorra para a Vida Eterna, e em relação à qual a Imposição-das-Mãos, na Confissão, ou como hoje se volta a dizer, o sacramento-da-Reconciliação, funciona como desbloqueador, como reconforto, medicina, terapêutica, confirmadora. Não é possível continuar a desligar a Confissão dos Pecados e o Batismo, sacramento da Metanoia, o fundamental sacramento da Penitência, o único que os Primeiros Discípulos conheceram e praticaram. A Consciência? Sim, a Consciência, de forma mais terrível do que a Lei, não perdoa. Que digam os Modernos, os clientes da Psicanálise e que enchem os consultórios dos psiquiatras. As palavras de S. João precisam de estar sempre presentes: “Filhinhos, se o nosso coração vier a condenar-nos, saibamos que Deus é maior que o nosso coração…”. E é preciso sempre voltar, sem Lutero e sem Jansenius, à autêntica justificação, que é da Fé, que é da Graça. E o Amor, que cobre uma multidão de pecados, afasta o Temor, o medo…
Por outro lado, é urgente reencontrar o sentido da RECONCILIAÇÃO, no plano teologal e no plano da Práxis. Reconciliar é igual a reunir, que visa unir. Refazer-se, ao nível da Pessoa e da Comunidade. Ora, por força da significação, do significado e significante sacramentais, a Eucaristia é o lugar-tempo e a forma permanente de nos re-fazermos. O poder purificador, santificante!, da Eucaristia é permanente, irrefutável. Nunca é demais lembrar que a comunhão não é um prémio, mas um alimento reservado aos Vivos, porque os Mortos não comem, e há pecados, segundo S. João, que matam, e há outros… que não matam! Além disso, é bom ter sempre presente que só não pode comungar quem não está em-Comunhão, doutrina antiga e sempre nova. Ao nível da Pessoa, isto é doutrina segura. Ao nível da Comunidade, a Doutrina não mudou, mas a Disciplina alicerçada no poder apostólico de ligar-e-desligar mudou muitas vezes, e mudou muito, tanto quanto um milénio dista doutro milénio: o 1.º Milénio, em que o sacramento da Reconciliação não era reiterável, e o 2.º Milénio, em que a Confissão se tornou tão frequente que os confessores da Fé, isto é, da Confiança!, se tornaram mil vezes confessados, mil vezes absolvidos. Então? No 3.º Milénio à vista, a partir da nossa experiência penitencial atual, não é difícil perceber que os Católicos vão confessar-se cada vez menos e cada vez melhor, quando se confessarem, quando precisarem da maravilhosa terapêutica da Confissão. Mas, ao nível da Comunidade, a questão é e será sempre complexa, como é neste momento a situação dos que estão em situação irregular da ordem matrimonial. Não são poucos os membros da Igreja que estão nesta situação, agravada sob o peso de uma disciplina canónica matrimonial, tipicamente romana, muito pouco bebida na autêntica Tradição da Igreja Indivisa, onde a Economia da Graça deitava a mão e salvava o que andava perdido. Até parece que agora a única coisa que impede uma pessoa de comungar, ou de estar em-comunhão, é o facto de se casar… Pode-se ser um mau Católico, pode-se viver em ódio, pode-se ser orgulhoso e arrogante, um tirano, nadar na abundância e desprezar os Pobres, pode-se fazer tudo e, apesar de tudo, comungar. Não se pode casar… Ou pode-se casar com condições!… impossíveis tantas vezes, em situações impossíveis com solução judiciária deprimente e humilhante, anuladora do casamento e… das pessoas. Mas que fazer, ao nível da Comunidade, porque ao nível da pessoa já vimos. Que fazer?
Ninguém tem soluções, e eu também não tenho. Mas, duma forma ensaística, gostaria de sugerir algumas pistas sobre a RECONCILIAÇÃO. Porque é dela que aqui se trata, não em relação à excomunhão, palavra maldita! que nem se pode pronunciar, de tal maneira já serviu para tudo e para nada; mas em relação à Comunhão, relação vital com a Eucaristia. Ao nível da Comunidade. Eu distinguiria aqui o público e o privado. E reservaria intervenções de Comunidade [sempre terapêuticas] aos pecados públicos… aos pecadores públicos… Mas uma intervenção segundo o método que Jesus nos deu: “Vai ter com o teu Irmão… Se isso não for suficiente, chama um terceiro… Senão diz à Igreja… Se a Igreja não conseguir nada, então torna-se evidente que não há nada a fazer…” É preciso falar com as pessoas, ouvir as pessoas, aprofundar as questões… até encontrar, ou não, a solução. Eu reservaria as intervenções públicas [da Comunidade!] para as pessoas públicas, para os atos públicos, que têm a ver com terceiros, tal como acontece, no plano da Lei, mas não ao estilo da Lei!, com terceiros. É claro que, se deixam para o Padre esta penosa e difícil tarefa, como acontece quase sempre, o Padre meterá os pés pelas mãos e acabará por se envolver num conflito local, pois as questões públicas são complexas e as pessoas públicas costumam ser poderosas… O Método tem eficácia entre Irmãos, ou não terá. O Padre, quando for chamado, se for chamado, será um conciliador! Nunca um patrão, muito menos o juiz. É claro que o método só funcionará quando voltarmos a ter Comunidades fraternais, e Ministérios de toda a ordem, variados e adequados. Até lá será preciso caminhar para lá, novas metas da Comunhão Fraternal, onde a Eucaristia é o ponto-de-Chegada e o ponto-de-Partida. A Liberdade, sempre a Liberdade, falo da liberdade dos filhos de Deus, a liberdade dos Santos, sempre nos fez bem, muito bem. A falta de Liberdade sempre nos fez muito mal.
E, para terminar, vou lembrar o caso de Bartolomé de Las Casas. Prova de que a Eucaristia é o grande lugar, lugar permanente da RECONCILIAÇÃO, até para a conversão dos Padres.
Bartolomé era um padre espanhol que, como todos os padres espanhóis, celebrava todos os dias a Missa, a sua missinha. E tinha uma ambição, como todos os espanhóis, incluindo os padres espanhóis: possuir uma hacienda. Como em Espanha toda a terra já estava na posse de quem a tinha, Bartolomé embarcou nas caravelas de Colombo e realizou o seu sonho: foi-lhe atribuída uma hacienda. Mão de obra? Abundante, mas escrava. Todos os dias Bartolomé lá estava no Altar a celebrar o Santo Sacrifício. Nunca descobriu que estava em-Pecado. Não se confessava ele tantas vezes? Até ao dia em que, como S. Paulo, caiu em si, coisa muito penosa… É mais fácil cair em cima dos outros! Como foi a conversão de Bartolomé de Las Casas? Estava a celebrar a sua missinha e leu, não pela primeira vez, mas foi como se fosse a primeira vez, uma passagem do Livro dos Provérbios [do Antigo Testamento]: “Deus não aceita oferendas de pão roubado aos pobres”. O choque foi terrível, e a conversão foi fulminante. Não sei se foi a correr confessar-se. E, se o fizesse, pouco adiantaria, pois o seu Confessor, como qualquer confessor espanhol, lhe justificaria o injustificável… Mas sei que, após a Conversão, entrou em grande velocidade no caminho da Santificação, e logo da Ação. Deu a liberdade aos escravos, entregou-lhes a quinta e veio para Espanha combater os crimes da colonização espanhola e estabelecer, juntamente com um famoso canonista, as bases do primeiro Direito das Gentes. Até os Padres se podem converter a celebrar a Missa. O poder reconciliador da Eucaristia!, já S. Tomás de Aquino o dizia. Os Catecúmenos fazem-se cristãos no Batismo-Crisma. Os Santos têm na Eucaristia o lugar-tempo do processo da sua santificação. Os outros, os Pecadores batizados, onde se re-fazem? Na Eucaristia.
Oh! não, a Eucaristia não substitui a Confissão quando ela é necessária, canonicamente necessária, e além de necessária muito útil, insistentemente recomendada pelos papas. Necessária e útil, até depois da Comunhão feita… sem confissão, mas com conversão. Mas não é preciso, não se deve, não se pode mecanizar a Graça. Não se processa a Graça, como se processava a Lei…
Leonel Oliveira
Atas do 3.º Congresso Eucarístico Nacional, Braga, UCP – Faculdade de Teologia e Conferência Episcopal Portuguesa, 1999, pp. 173-176.
Imagem: “A Ceia” [1909] | Emil Nolde [1867-1956]