Secularização é daquelas noções ambíguas capazes de provocar uma guerra de palavras infindável. Século e Mundo em vocabulário cristão são sinónimos. Se, em História da Igreja, traduzíssemos secularização por mundanização, o resultado não seria famoso e levar-nos-ia a conclusões contraditórias. Neste sentido, a Igreja durante os séculos renascentistas sucumbiu à tentação secular, pois mundanizou-se escandalosamente; neste sentido, a Igreja em nossos dias é, sobretudo nos seus sectores considerados mais contestatários e secularizados, anti-mundana ou anti-secular.
Será que andamos a queixar-nos do fenómeno moderno da secularização como os romanos se queixaram dos cristãos desde 64 até ao famoso ano de 313, em que finalmente pelo Édito de Milão deram a paz à Igreja? De facto, não é a mesma coisa. É até outra coisa bem mais interessante. Talvez estejamos a tirar as conclusões históricas do processo que a própria Igreja meteu no mundo… Conforme se ouviu no VI Simpósio dos Bispos Europeus, reunido na primeira semana de outubro último em Roma. Ali se falou dos aspetos positivos da secularização.
Os pensadores liberais e modernistas de mil e novecentos não aceitavam a historicidade das perseguições pelo Império Romano, argumentando que os romanos eram extremamente tolerantes. De facto, os romanos eram o povo mais civilizado do seu tempo e muito tolerantes, sobretudo em matéria religiosa e filosófica. Mas a Igreja dos Mártires foi um facto, hoje irrefutável e abundantemente provado pela ciência histórica. Até ao ano 313, a Igreja foi desde a Síria à Espanha esmagada em sangue, perseguida de todas as maneiras. Como explicar? Os romanos não toleraram os judeus, cuja religião lhes repugnava? Uma vez eliminado o perigo político que eles representaram nos anos 70 e 135, os judeus nunca mais foram incomodados pelo poder romano. Mas é que os judeus, apesar de terem uma religião execrável aos olhos dos romanos, eram uma religião. Em relação à Igreja o problema era muito mais grave. Pode haver uma religião sem deuses, sem altares, sem templos, sem sacrifícios, sem sacerdotes? Ora, era assim que os romanos viam a Igreja: uma impiedade. Diríamos hoje: uma “religião secular”, o contrário duma religião. Vejamos um trecho da Ata do Martírio de S. Policarpo, bispo de Esmirna na primeira metade do século II: “O procônsul mandou que o trouxessem. Perguntou-lhe se se chamava Policarpo. O velho bispo acabara de ser preso aos gritos da multidão que lhe rodeara a casa: ‘Entreguem-nos o ateu!’ […] ‘Jura pela felicidade de César, retrata-te e diz somente: Abaixo os ateus!’. Policarpo, olhando a multidão que enchia o estádio, repetiu: ‘Há 80 anos que o sirvo, e nunca me fez nenhum mal. Como poderia eu ultrajar o meu rei e meu salvador?'”.
De facto, os Cristãos recusavam os deuses, todos os deuses, tanto do mundo sublunar como dos astros, tanto os deuses das religiões como os das filosofias. Adoravam o Criador, Alguém que as nações não conheciam, pois todos os seus deuses ou faziam parte do Universo [forças naturais], ou eram o Universo [panteísmo] ou, na ideia mais elevada da Filosofia, eram expressões dum deus único, alma do Universo. Os romanos não podiam, como qualquer nação, entender o Deus dos Cristãos: IAVÉ [Aquele-que-é], KYRIOS [na Bíblia Grega], DOMINUS [na Vulgata Latina], aquele que na nossa língua dizemos SENHOR; pior ainda, porque os Cristãos adoravam um homem, Jesus de Nazaré, condenado e crucificado “sob Pôncio Pilatos” – a aberração não podia ser maior! A Igreja não possuía templos, pois os Cristãos é que eram o Templo; não tinham altares, mas uma mesa: que faz tanta gente à volta de uma mesa? Uma mesa onde “comiam” carne humana e “bebiam” sangue humano; o que era a Eucaristia?!… Também não tinham sacerdotes, pois eram todos Irmãos, e os seus ministros eram apenas “presidentes” duma Assembleia, coisa perigosa tanto mais quanto eram assembleias noturnas e reservadas.
Os romanos não poderiam perceber a secularidade duma religião, que esvaziava o Universo dos seus deuses e reduzia o Mundo ao mundo. Que fazer dos Altos-Lugares, dos Bosques-Sagrados e das Almas dos antepassados? Eles não estavam a par da “dessacralização” operada desde Abraão, constituída pela lei, e aprofundada pelos profetas, instituída definitivamente em Jesus Cristo, “em quem o Templo foi destruído”, como todos os lugares sagrados [João, 4]. Os tempos sagrados? “O sábado é para o homem!”. Os Romanos ignoravam tudo sobre a nova Religião que acabava com as pessoas sagradas porque pela fé e pelo batismo chamava todos os homens à Santificação Universal.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 2 | Voz Portucalense, 7 de novembro de 1985

Imagem: “Descida aos Infernos” [1408-1410] | Andrei Rublev