Não podemos negar que nos colámos às festas pagãs, com o mesmo direito [de facto] com que nos colámos às festas judaicas. E estamos hoje com as mesmíssimas dificuldades em nos descolarmos pastoralmente das festas pagãs, que tivemos na ruptura com o Templo. Para lhes curar a tristeza fatal tivemos que invadir os bosques-sagrados-da-evasão dos homens e dos povos. Tendo com Abraão, Moisés e os Profetas, deixado o sagrado pelo santo e, com Jesus, por Ele, n’Ele, chegado à adoração em espírito e em verdade, os caminhos da evangelização levaram-nos novamente a percorrer os passos de Ulisses. Que o digam os irlandeses Columba e Columbano nos passos da reevangelização da Europa ou o Sr. Joyce na sua viagem frenética ao interior e ao anterior, e nas suas angustiadas descobertas das raízes podres. Aqui se referem os irlandeses, pois foi com eles que a evangelização não guardou quaisquer distâncias com os mais altos e os mais baixos lugares do paganismo. Como Bonifácio Winfrid, morto às mãos dos frígios, eles chegaram tão perto do povo e dos povos que as Igrejas nascidas ou renascidas se identificaram com esses povos. Foi possível este fecundo encontro, como desejamos para a modernidade, porque a Igreja procurou os bárbaros com a mesma força e desejo com que os bárbaros procuravam a Igreja. ‘Popular’ naqueles dias não tinha, como hoje, o sentido superficial ou ideológico, e os Santos eram populares pois arrastavam as multidões do Evangelho, sem precisarem de cultivar qualquer forma de populismo ou popularidade. Data daqueles dias a mais completa e finalizada simbiose da Graça com os tempos e as festas das culturas pagãs [século VII e seguintes, até ao Século de Ferro, o IX].
Aos chamados agora agentes da Pastoral dever-se-ia recomendar uma grande prudência na descolagem. Mas isso é muito fácil de dizer. Todos os avanços, inclusive os não programados, trazem sempre rupturas. “O discípulo é mais do que o Mestre?”. Se não descolamos, nunca mais partimos para a modernidade e ficamos transformados num museu cheio de fósseis, apodrecendo com as raízes podres do mundo do Sr. Joyce, que para não enlouquecer deixou a sua ilha, a querida Irlanda, querida e odiada ao mesmo tempo.
Descolar não é o mesmo que polemicar, nem historicamente se traduz em ‘sacudir a água do capote’ ou ‘lavar as mãos’, como se agora nos quiséssemos puros. É toda a ideia de popularidade que é preciso urgentemente rever, sem cair do ‘folk’ dos políticos.
Não nos engane a falsa modernidade. ‘Moderno’ é tão ambíguo como ‘popular’. O que faz a modernidade não é a sua suficiência, nem as suas aquisições, mas uma nova sensibilidade cada vez mais alargada e universalizada, desencadeadora de sofrimentos, inquietações, reivindicações e aspirações novas, “humanidade legitimamente difícil”, como lhe chamou Teilhard de Chardin. Nós não descolaremos duma Igreja enterrada para passarmos a uma Igreja desterrada, nem trocamos [Deus nos livre!] uma Igreja popular por uma Igreja impopular. Nosso ‘opus Dei’ é sempre o Povo de Deus, sem os elitismos de certos ‘opus’ que não são de Deus, nem são do Povo de Deus, mas saudosismos do poder-nas-mãos… Entraremos pela modernidade dentro com a mesma coragem de Columba e de Columbano quando invadiram o paganismo. Povo de Deus no meio do povo e dos povos, vencendo definitivamente o espírito de cerco do adro e da cidadela eclesiástica.
Os bons velhos tempos estimular-nos-ão e inspirar-nos-ão. Os maus velhos tempos tornar-nos-ão prudentes e experimentados. Uma reciclagem? Mas as Fontes não estão sempre no meio de nós para nossa refontalização, diária, sazonal?! Antes uma reciclagem do mundo, como Moisés quando foi ver os seus irmãos, como Jesus quando saiu, “Verbo de Deus saído do Pai”, “Jesus de Nazaré entre nós”, “saiu o semeador a semear”. Trata-se duma nova saída, duma missão nova para a modernidade. Nem sempre o que anda pela sacristia é o melhor e o mais representativo das nossas comunidades diocesanas, paroquiais, ou outras. Nós temos as nossas naves cheias de gente verdadeiramente moderna, que faz um esforço enorme para descobrir que é para eles tudo aquilo, gente que era preciso respeitar pelo menos com a mesma atenção que se dá ao que anda pela sacristia. Porque não se dá o contacto? A Palavra é popular e diante da Palavra está o Povo de Deus. Já não há o latim [que também era popular], mas nem a língua portuguesa [maltratada!] faz o contacto. Anda no meio de toda esta dificuldade pastoral qualquer coisa que o impede. Não será o medo que sempre temos de nos queimarmos naquele Fogo com que Jesus veio atear o mundo? A falta de contacto pode ser propositada, inconscientemente intencional, isto é, estarmos a viver uma fase em que as nossas Igrejas inconscientemente desejam ser impopulares, aproveitando a popularidade como álibi.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 32 | Voz Portucalense, 12 de junho de 1986

Pintura: pormenor de “Lunatics” [2001-2002] | Odd Nerdrum [1944-]