Não e preciso ser o mais inteligente dos homens desta geração para perceber que os cristãos europeus ocidentais mancam. O que mais parece ferir as Igrejas de Leste, quando entram em contacto connosco, é uma certa falta de carácter. Refiro-me ao carácter batismal, que nos marca como tais, como cristãos. Passados — no pequeno espaço dum século — de uma geração sofrida e aguerrida a outra ativista e dialogante, esquecemo-nos de quem somos. Crise de identidade! Dilema nosso. Sempre que nos unimos, fechamo-nos; quando nos abrimos, dissolvemo-nos. Desconcertante diálogo: todo o mundo que dialoga connosco sabe o que diz, sabe o que quer e não tem ‘papas na língua’, ao passo que nós… depois de ouvir todo o mundo, parece que estamos sempre com o ‘rabo trilhado’, emudecemos como quem está carregado de dívidas. Quem diria? Ainda há bem pouco tempo ‘botávamos faladura’ sobre tudo e sobre nada, mandando para o inferno quem não dissesse connosco.
Depois de termos abusado da Apologética, ao ponto de já nem a nós próprios nos convencer, ganhámos-lhe tamanho horror que tenho consciência de que esta minha abordagem aos apologetas em Actos e Actas não será muito simpática. Tanto melhor quanto penso na necessidade urgente de repensar o processo e os termos da Evangelização. Não pensemos que vamos, sem mais, re-evangelizar, depois de ter evangelizado e des-evangelizado. Frente às massas europeias, inclusive as portuguesas, quando não somos desconhecidos [o Cristo e nós], somos mal conhecidos. É triste, muito triste, ouvir certos sermões, sobretudo dos mass media, como se estivéssemos todos dentro duma igreja. Nem se diga que a Igreja é de vidro para 90% dos portugueses. Nem é verdade para quem está do lado de fora, nem é verdade para quem está do lado de dentro. Pode ser verdade quanto ao Cristo, mas, infelizmente, apenas como orago da nossa etnia…
Em termos de pré-evangelização, não se tratará de fazer tábua rasa com nações e povos passados todos pela Cristandade, nem de fazer pouco das sementeiras umas sobre as outras, sobre uma terra onde nem sequer faltou o sangue dos Mártires. Não se evangelizou sem mais nem menos gente que nos julga conhecer de sobra, gente para o meio dos quais pretendemos ir, pensando deles o melhor ou o pior. Precisamos da Apologética, isto é, da Apresentação, na medida em que somos desconhecidos ou mal conhecidos. Exatamente porque ninguém mais voltará a entrar na Igreja como entraram nos dias de Clóvis: os dias do “força-os a entrar” e do “batizam-se agora, catequizam-se depois”. Os nossos contemporâneos e conterrâneos podem ser os bárbaros da nova barbárie, mas não entrarão mais, infelizmente, como aquela vaga medonha que barbarizou a própria Igreja. Quando o Patriarca de Bizâncio veio a Roma pedir auxílio para a Igreja Grega, ameaçada pelos turcos, e se dispunha a refazer a unidade com os Latinos, ficou horrorizado quando lhe exigiram que beijasse o pé direito do Papa. Claro que, nestas condições, preferiu o Crescente à Tiara. Vindo procurar um irmão, havia encontrado um bárbaro.
Não precisamos de uma Apologética justificadora dos nossos pecados históricos, martelo dos hereges, apologética-aritmética, que faça de Deus um corolário, que faça de Cristo uma poção mágica e da Igreja uma fortaleza. Estamos precisados duma introdução e dum grande esclarecimento histórico, dum diálogo apostólico desassombrado, à maneira de Justino [séc. II] ou à maneira de Chesterton [séc. XX]. Sobretudo que a Apologética não vá demasiado à frente sozinha. Atrás, por trás, fique e esteja, acompanhe o Testemunho de Comunidades unidas e abertas, descrispadas, livres e lúcidas. Porque, quando se explicar o nosso jejum, não se farão apologias gnósticas, mas uma informação verdadeira e coerente: “quando jejuardes…” [Mateus 6, 16].
“E quando morre um pobre, eles [os cristãos] contribuem conforme podem para as cerimónias fúnebres; se sabem que há alguém perseguido, ou preso, ou condenado, por causa de Cristo, põem em comum tudo o que têm e fornecem-lhes do que eles precisam; sempre que podem, libertam-nos; e, se há um escravo ou um pobre que necessita de socorro, jejuam dois ou três dias e assim do que para si próprios teriam guardado, guardam e mandam-lhes” [Apologia de Aristides, séc. II].
Neste tempo de Renovação da nossa Fé e da nossa Prática, não se renova uma coisa deixando a outra na mesma. Não há Fé sem conversão, não há Profissão de Fé sem testemunho, não há Apologética [em afrontamento ou em diálogo] sem dignidade, sem respeito por nós próprios e pelos outros. Não há Apologética sem verdade. Vamos ter com Justino ao século II e com Chesterton ao século XX, que eles nos ensinarão a não ter medo dos nossos adversários, nem a meter-lhes medo.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 8 | Voz Portucalense, 19 de dezembro de 1985
Imagem: Santa Maria del Popolo [Roma], Capela Cerasi: “Assunção da Virgem”, de Annibale Carracci, e “Conversão no Caminho para Damasco”, de Caravaggio.