Quem conhece Úlfilas? Não fora ele ariano, por acaso, e estaríamos agora a venerá-lo entre os grandes evangelizadores, ao lado de Cirilo e Metódio. Não vivesse ele entre os Godos e haveria em qualquer sítio um qualquer príncipe cristão, católico e ortodoxo, que lhe estenderia o braço armado para o emudecer. Úlfilas foi o primeiro grande evangelizador dos Germanos, que deu ao arianismo — inicialmente uma seita, depois doutrina oficial do Império Cristão e, uma vez o império regressado a ortodoxia de Niceia, tornado heresia. Estávamos no século IV. O Concílio de Niceia havia condenado Ário, o mais perigoso heresiarca que a Igreja teve, que defendia — contra a Igreja Católica e contra a sua ortodoxia — uma cristologia coerente e muito fácil: Cristo, Verbo de Deus encarnado, é uma criatura de Deus. Ao negar a divindade de Cristo, Ário resolvia a sua humanidade difícil, porque o que sempre estava — e esteve — em questão era a sua humanidade: como é que o Homem pode estar tão unido a Deus que lhe seja consubstancial? O mais fácil é negar-lhe a divindade, exatamente porque o mais difícil é explicar-lhe a humanidade. Entre os Gregos foi o primeiro grande choque do Mistério de Cristo. A Ortodoxia venceu por mérito próprio, pois católicos e ortodoxos foram perseguidos pelo poder imperial de todas as maneiras. A doutrina católica fiel a Niceia ganhou todas as Igrejas e o imperador teve que se render mais uma vez ao testemunho dos mártires. Se não fora Úlfilas, o arianismo ficaria reduzido a uma seita. Ora, acontece que, no intervalo dos debates e hesitações nicenos e pós-nicenos, o Evangelho transborda para os Godos, entretanto aproximados do mar Negro, entre o Danúbio e o Dniepre. Úlfilas era neto de Cristãos originários da Capadócia, raptados pelos Godos num dos seus ataques à Ásia Menor, em 257-258, e levados cativos para além-Danúbio. Crescendo entre os Godos, Úlfilas conhecia perfeitamente a língua e os seus costumes, sem ter esquecido nem o grego nem o latim e, sobretudo, a sua fé de cristão. Era leitor da pequena comunidade de cristãos entre os Godos quando, numa embaixada enviada aos romenos, teve ocasião de contactar pela primeira vez com as autoridades da Igreja.
Ora, o arianismo havia-se implantado no império e os Católicos, tornados minoria, eram perseguidos em todo o Oriente pelo imperador Teodósio. Úlfilas, ordenado bispo pelo ariano Eusébio de Nicomédia, vai evangelizar os Germanos com uma doutrina ariana. Se não fora o seu arianismo — e mais tarde o choque entre católicos e arianos, aquando da invasão dos Bárbaros —, estaríamos a glorificar o que de facto foi um trabalho espantoso de evangelização. Como Cirilo e Metódio, entre os Eslavos, também Úlfilas deu aos Germanos um alfabeto para lhes transmitir o Evangelho. Mas, sem o querer e sem o saber, Úlfilas deu ao arianismo um futuro que este não merecia.
Não dizem os Portugueses que “Deus escreve direito por linhas tortas”? Não disse Jesus aos seus discípulos, indignados por outros usarem o nome de Jesus para fazer milagres: “Não os impeçais!”; “Ninguém pode usar o meu nome, e depois dizer mal de mim”; “Quem não é contra nós, é por nós”?
Porquê, portanto, este medo e esta aversão — tão desproporcionados — dos outros e aos outros? No mistério do Reino de Deus as misturas não são tão más quanto parecem. Será que temos medo dos outros, ou de nós? O documento recente vindo de Roma, sobre as seitas, insiste mais sobre nós do que sobre os outros. Sim, é na medida em que nós somos quem somos e fazemos o que dizemos que não temos que ter medo dos outros. Até porque o Evangelho é uma realidade que nos transborda e, às vezes, nos ultrapassa. Houve seitas e heresias, como no caso do arianismo, que vieram a tornar-se grandes Igrejas e que, uma vez o diálogo estabelecido — apesar do choque —, foram capazes de fazer a comunhão da fé e da doutrina. É como os casamentos mistos, a que ganhámos tanto horror durante tanto tempo, e foram eles — na melhor linha de S. Paulo — que levaram o Evangelho aonde à primeira vista era impossível, através das mulheres cristãs casadas com homens pagãos.
Temos tanto medo de invasões e intrusões!… Tanto medo que logo pegamos e partimos com armas contra os pagãos, os mouros, os judeus, os protestantes. Úlfilas poderia ser o patrono duma outra atitude. Numa outra oportunidade, havemos de estudar melhor este transbordar da Boa Nova. Não será que as seitas, que tanto detestamos, vão à frente de nós — aos sítios aonde nós nunca vamos — a preparar-nos o terreno? O documento romano sobre as seitas põe-nos mais problemas a nós do que às seitas que detestamos. Pois diz que talvez os frequentadores de seitas encontrem nelas o calor e o acolhimento que não encontram entre nós, que vivemos em espaços institucionais tão grandes que nem é preciso muito para as pessoas se perderem dentro da própria Igreja…


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 34 | Voz Portucalense, 26 de junho de 1986

Fotografia: cúpula da Basílica de S. Pedro, Roma