Apesar de já não vivermos nos tempos do Grande Medo [do século XIV ao século XVIII], a palavra ‘penitência’ tem ainda o poder de nos causar calafrios. A história da prática penitencial, tão diversificada desde as origens aos nossos dias, contém uma tamanha complexidade de tradições, razões e variações, que a geração do Regresso às Fontes não deveria deixar-se tentar outra vez pelo debate das formas, o que infelizmente está a acontecer. Não que estas não tenham a sua importância, mas os novos confessionários, com novos confessores, para novos confessados, ainda estão por inventar e por descobrir. Aquilo em que ainda se insiste é de molde a perpetuar a velha neurose… E os Modernos cada vez mais suportam menos o formalismo, apesar de terem tanto ou mais problemas de consciência que os Antigos. A penitência não se reduz ao confessionário, evidentemente. Ela é anterior à confissão e persiste para além da confissão; mas é o segredo duma confissão eficaz! Que penitência? A questão essencial da penitência reside na natureza da penitência.
Os primeiríssimos cristãos só conheciam uma penitência: a que levava ao Baptismo e que se chamava CONVERSÃO — ou, melhor: METANOIA — e cuja plena eficácia coincidia e se identificava com o Baptismo. Quer dizer que o Baptismo era o Sacramento da penitência, da METANOIA, da mudança do homem passado das Trevas à Luz, do Pecado à Graça, da Servidão à Liberdade dos filhos de Deus, da Morte à Vida.
Nestes primeiríssimos tempos da Igreja só havia Catecúmenos e Batizados. Foi muito difícil na Igreja a aceitação de Pecadores no seu seio. Repugnou tanto, que houve quem dissesse que “era como o cão que engolia o que vomitara”. Foi tão difícil que as Igrejas dividiram-se sobre o tratamento a reservar aos caídos [lapsos]. Aconteceu em grande escala pela primeira vez na perseguição sob o imperador Décio [ano de 250]. Uma cilada terrível: todos os cidadãos romanos eram obrigados a participar num sacrifício público para reforçar a unidade à volta da religião romana. Os mártires foram numerosos, mas também numerosas foram as quebras de resistência, ao ponto de alguns, sem sacrificar, conseguirem um certificado [‘libellus’], tão grande foi o pavor. Que fazer aos lapsos? Tanto mais que após a queda vinham com toda a humildade pedir à Igreja que os recebesse novamente. Não havia novidade em reconciliar cristãos pecadores e conceder uma vez na vida a absolvição, depois do Batismo, era já doutrina e prática corrente mais ou menos generalizada. O Pastor de Hermas, obra escrita por volta do ano 140, diz: “Se alguém, depois do Batismo, cair no pecado, pode entrar em penitência uma vez. Mas se pecar de novo, mesmo que se arrependa, a penitência não lhe serve de nada”. Comparados com os numerosos lapsos da perseguição de Décio, estes penitentes eram exceção.
Custou muito à Igreja aceitar os Pecadores no seu seio, mas a evidência e a verdade impuseram-se-lhe: a Conversão leva ao Batismo, mas não acaba com o Batismo; a Igreja é uma Comunhão de Santos e… Pecadores. Ao lado dos Catecúmenos apareceu uma nova ordem de Cristãos: os Penitentes, a quem era concedida uma única e última oportunidade.
Houve quem pensasse durante muito tempo que a diferença entre a prática penitencial antiga e a que se introduziu com a reevangelização da Europa, por monges irlandeses e escoceses, até aos nossos dias, estava em que aquela era pública e esta privada. De facto, essa não é a diferença. A grande diferença está em que nos primeiros séculos a Penitência não era reiterável e depois tornou-se reiterável, tantas vezes quantas os cristãos quisessem ou precisassem. E a prática penitencial atingiu tamanha desenvoltura e confusão que duma Igreja-de-Santos passámos a uma Igreja-de-Penitentes!… Ainda há bem pouco tempo os fiéis assistiam à missa sempre de joelhos do introito à despedida. Os bancos das igrejas tornaram-se genufletórios! Que caminho percorrido! Que linhas tão tortas!…
Todavia, para além das formas e das deformações, uma conquista tornou-se irreversível: o processo de santificação universal passa pela conversão permanente e pela abertura universal aos pecadores. Lendo o Evangelho em vinte séculos de profundidade e de largura, quem está mais perto das Fontes? Os primeiros ou os últimos Cristãos? Mas a Pastoral do Medo, com os seus ministérios do Medo, ainda não foi completamente vencida: enquanto a Penitência e todas as suas formas, incluindo sacramentos, não traduzir METANOIA e o Batismo não for a sua referência original, uma libertação progressiva de todas as servidões, autêntica Páscoa, continuaremos a arrastar as tradicionais neuroses e a fazer confessos, em vez de confissões de Fé.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 17 | Voz Portucalense, 27 de fevereiro de 1986
Pintura: “O Semeador” [1890] | Vincent van Gogh [1853–1890] [EDIT]