“Valor sem fronteiras”, a Paz é uma velha questão, tão antiga quanto o homem. Homens irmãos, homens rivais, homens inimigos. Coisa estranha, curiosa: é a proximidade que faz a rivalidade. Irmãos rivais! Rival, de ‘rivus’, rio. O maior bem, essencial à vida: a água! Povos ribeirinhos são povos rivais, em guerra permanente. Ocupando o mesmo espaço, físico ou afetivo, os irmãos são rivais. Rivais na posse dos bens.
Velha questão, novíssima questão, eterna questão, a dos bens, causa de todos os males dos homens. Sempre esbarramos com os bens e são poucos aqueles que lhes conseguem receber o bem que significam e concedem, sacramento das coisas!… Seria preciso o estado-de-graça-natural, não?! Ou outra graça…
Os bens têm tudo a ver com a Justiça, pois foram dados aos homens para bem de todos os homens e do homem todo. A Moral, não a dos costumes, a do ‘parece-bem’ ou do ‘parece-mal’, mas a nossa Ética, Moral-do-Bem, nunca aceitou que a Lei [positivista] a afastasse dos bens, a pretexto da religiosidade [assunto à parte] ou da secularidade [reserva da Política]. Só é pena que o partido dos religiosos, como o partido dos políticos, aceite e até defenda a dicotomia… Os bens de que depende a sobrevivência humana não são tão sagrados como os bens que multiplicam os homens? Então, por que se fulminam com todas as condenações os pecados contra o sexo e se passam em silêncio os pecados, que também bradam aos Céus, como não pagar o salário a quem trabalha ou espoliar o órfão e a viúva, e tantos outros?
Faltando à melhor tradição, parece que não temos sido muito fiéis na nossa prática social cristã. E ninguém poderá dizer que é por falta de doutrina. Os ricos, os grandes e os poderosos não podem estar na Igreja de consciência tranquila. Nem as muitas esmolas, nem as boas palavras, lhes darão tranquilidade diante das invetivas dos Profetas, dos Apóstolos, e da Palavra que não passa… ainda que passem o Céu e a Terra: “Não podeis servir a dois senhores”.
Entre a Igreja dos Discípulos da 1.ª Hora e a Igreja dos Discípulos desta 25.ª Hora, há uma constante sobre a teologia dos bens, que nestes dias só espanta na medida em que pouco nos tem movido à ação. Nem as loucuras belicistas e homicidas da gnose marxista nos justificarão a impassividade e a inércia. A defesa da propriedade não pode desarmar, na medida em que sabemos quanto a liberdade, valor fundamental, lhe está ligada. Perdendo a liberdade, mesmo a liberdade de fazer mal, perderemos toda a capacidade de fazer bem: a liberdade é um bem inalienável! Leão XIII disse-o frente aos socialismos mil e novecentistas. “Não foram as leis humanas e sim a Natureza que conferiu à pessoa como tal o direito de propriedade particular” [Rerum Novaraum, IV].
Mas, se a evolução das ideias e das práticas sociais e políticas hoje, mais do que há alguns dias, dá razão enfim a Leão XIII, é um desastre, autêntico desastre, que os horrores cometidos pelos socialismos-da-Miséria, sobejamente agora conhecidos, tenham feito recuar o pensamento da socialização. João XXIII não temeu usar a palavra em Mater e Magistra [2.ª Parte]. O Concílio do Vaticano II em Gaudium et Spes [n.º 25], sem a considerar isenta de perigos, analisa a socialização como um dos sinais dos tempos e deseja uma sã socialização. Infelizmente, a todos os níveis, estamos a assistir a um recuo da ideia de socialização, que Edgar Morin diria que não é mau de todo, um certo refugo talvez à espera de dias melhores. Entretanto, liberalismos à moda do clubes de Paris estão a fazer o elogio da desigualdade e, só Deus sabe!, a preparar guerras de classes doutro tipo…
Havemos de explicar em Actos e Actas, se soubermos e pudermos, por que razão a linguagem da Igreja em relação aos pecados contra os bens, que Deus criou para bem de todos os homens e do homem todo, de violenta nos primeiros séculos passou a moderada nestes últimos séculos. Outras situações? Outra pedagogia? Uma questão de método? Talvez e não só. Talvez tenha mais a ver com as contradições da Igreja e, sobretudo, com as contradições do mundo. “Paz, paz!, diz o profeta, por que estais sempre a dizer paz, se não há paz?!…”. Talvez o século de São Basílio tenha alguns segredos a revelar-nos. Talvez o século XX exija mais sabedoria do que aquela que o cristão Proudhon foi capaz de ter no século XIX. Mas sabedoria é uma coisa e acomodação ao mundo é outra.
Norte-Sul, Leste-Oeste. Todas as fronteiras, em princípio legítimas, de facto estão em estado de pecado mortal. Pacem in Terris não se ouve atrás das trincheiras. João XXIII foi extraordinariamente novo para tempos tão velhos ainda.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 10 | Voz Portucalense, 2 de janeiro de 1986

Imagem: Papa João XXIII | Angelo Giuseppe Roncalli [1881-1963]