Com o tempo tiraram-lhes quase tudo. Com o tempo ganharam quase tudo. Não houve intenção, não obedeceu a um desígnio. Foi uma tendência, um processo histórico. Mas tornou-se quase um vício. O Batismo, quase sempre sem o Crisma [achado não absolutamente necessário], bastou quando chegou a hora do regresso às Fontes. Nome próprio impróprio, como quase todos os nomes apelidos dados às coisas e às pessoas pelas decadências, desfigurações ou perversões. Leigos! No principio eles eram o todo, até que passaram a ser a parte maior menor-etária. Desde logo foram o clero, isto é, a parte de Deus no meio do Mundo, distintos do Mundo, não-mundanos, não-seculares, em oposição ou em tensão com o Mundo, ‘laós Theou’, povo, leigos, plebe de Deus, Povo de Deus! Com os Ministros [bispos, presbíteros, diáconos, etc.], eles eram todos irmãos [‘adelfoi’], ou a Fraternidade [‘adelfotês’], ‘Ekklesia Theou’, Igreja de Deus [ou Igreja de Cristo, ‘Ekklesia Xristou’].
Ainda há bem pouco tempo, quando se queria chamá-los à obediência, pô-los no lugar ou cortar-lhes as asas, lembrava-se-lhes a sua condição de leigos. Hoje, quando se quer chamá-los à participação e à ação, fala-se-lhes de Leigos e de Laicado. Na liturgia, para evitar confusões, são simplesmente fiéis. No nosso vocabulário estabeleceu-se tamanha confusão, que já não sabemos como dizer: “os Padres e os Cristãos” — mas os padres não são cristãos? “Os Padres e os Fiéis” — mas os padres não são fiéis? Os fiéis são crentes, pois fiel vem de ‘fides’, que é a Fé. Então: “os Padres e os Crentes” — mas os padres não são crentes? Parece que é mais fácil sabermos o que são Leigos do que dizer o que são os Padres… Até porque Jesus Cristo falou claramente contra o paternalismo — “Não chameis Pai a ninguém, pois o único que tendes está no Céu” – e também falou contra o doutorismo — “Não chameis Mestre a ninguém, pois tendes um só que é Cristo”. “Vós sois todos irmãos, todos discípulos!”. Foram muito bonitos os nomes que Jesus escolheu para todos e para alguns que designou para tarefas especiais: discípulos e apóstolos. E foram muito ajustados os nomes que a Igreja escolheu para os ministérios do Novo Testamento, em organização: bispos, presbíteros e diáconos.
Até chegarmos aos Leigos, nome e pessoas, foi uma longa história de altos e baixos, tensões e até lutas, heresias e cismas, divisões e progressões. História longa e complexa, como é próprio da História, do que se faz e do que se sofre, do que acontece e do que é inevitável.
João Crisóstomo, no século IV, já não vive numa Igreja-Fraternidade — a Igreja-Fraternidade fugiu para o Deserto e manteve-se em conventos e mosteiros até aos dias de hoje — mas ainda tem a consciência do lugar dos leigos e da sua função ativa. Algum tempo depois se falará dá sua função passiva… “Tu não podes corrigir a igreja, mas podes advertir a tua mulher. Tu não podes pregar à multidão, mas podes guiar o teu filho… esse pequeno círculo não excede as tuas forças…” [Homilia 4, 2. Comentário aos Atos].
Mas que diferença em relação a São Paulo, normalmente acusado de antifeminista! Nos fins do século IV, a mulher já não faz parte dos Leigos, aliás quase até ao nosso século. Quando se fala de Leigos já não se incluem as mulheres. Ora o Apóstolo, além de reconhecer a igualdade absoluta — “em Cristo já não há Homem ou Mulher”, diz na 1.ª Carta aos Coríntios 7, 13: “Se alguma mulher tem marido não-crente, que consente em coabitar com ela, não o repudie, pois ele será santificado pela esposa, do mesmo modo que a esposa não-crente é santificada pelo marido crente. E assim os vossos filhos são Santos”. Contudo, o ‘Boca-de-Ouro’ [Crisóstomo quer dizer ‘boca de ouro’] ainda tem o sentido do corpo, Corpo de Cristo em que todos somos membros uns dos outros, membros ativos, membros em serviço, em ministério: “O que mantém o corpo da Igreja é a difusão do alimento espiritual em todos os seus membros. O membro que guarda para si todo o alimento sem o comunicar ao seu vizinho é nocivo a si próprio e ao corpo inteiro” [Sermão 9, 2. Comentário ao Génesis].
A dificuldade que os padres têm hoje em relação aos Leigos não é tanto quanto ao seu lugar no Mundo, no Século. Este lugar eles o conquistaram desde o Renascimento que, mais do que renascença das Artes e das Letras, foi renascença dos Leigos, até serem acusados de laicismo. A dificuldade está quanto ao seu lugar na Igreja!…


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 23 | Voz Portucalense, 10 de abril de 1986

Pintura: “La diseuse de bonne aventure” [1635] | Georges de La Tour [1593-1652]