Demorou muito a perceber. Tanto que os filhos das nossas vítimas históricas ainda não acreditam. Mas chegamos lá. “Quem não é contra nós é por nós!” [Marcos, 9, 40]. Aí estão as atas do Concílio do Vaticano II com a lista dos outros, que finalmente aceitamos diferentes de nós, alguns muito-muito diferentes. Não só as atas. Os atos também começam a aparecer. 13 de abril de 1986 — data histórica, irreversível! João Paulo II visita a Sinagoga de Roma. Era preciso que fosse ali. Em Jerusalém, com Paulo VI, não bastou. Lá fomos nós os perseguidos, no princípio. Mas em Roma [dos papas] tivemos o triste privilegio de sermos os inventores do ‘ghetto’. O primeiro ‘ghetto’ da história do anti-semitismo foi obra nossa e foi, em Roma, obra dos papas. O mais escabroso dos ‘ghettos’, ‘apartheid’ por antecipação, foi criado em Roma pelo intratável Carafa, Paulo IV, papa de má memória. Havemos de voltar a este homem, obstinado e cruel, que aterrorizou de tal maneira a Igreja que o povo romano, depois da sua morte, invadiu e saqueou o palácio da Inquisição. É possível abordarmos agora, sem estremecer de indignação, este ponto alto da intolerância católica graças à reparação histórica nestes dias corajosamente assumida por João Paulo II. Eis um pedaço escabroso da famosa bula ‘Cum nimis absurdum’, de 14 de julho de 1555. Que os discípulos desta hora não temam a leitura das nossas crónicas desgraçadas, como os profetas do Antigo Testamento diante das abominações dos reis de Israel.
“Em Roma e nas outras cidades do Estado pontifício, os Judeus deverão daqui em diante habitar separados dos Cristãos, num bairro ou, ao menos, numa rua que tenha unicamente uma entrada e uma saída. Em cada cidade haverá somente uma sinagoga. Os Israelitas não mais poderão possuir prédios fora dos ‘ghettos’ e deverão vender a Cristãos os que estão situados nas zonas que não lhes estão reservadas. Cobrir-se-ão com chapéus amarelos; não terão serviçais cristãos; não terão relações estreitas com estes e evitarão fazer contratos com eles; nos seus livros de comércio utilizarão unicamente o latim ou o italiano; não poderão vender os objetos empenhados sobre os quais emprestaram dinheiro, antes de 18 meses. Não se entregarão ao comércio de trigo nem de qualquer outro produto necessário à alimentação humana. Nem se deixarão tratar por senhores da parte dos cristãos pobres”.
Sem cometer qualquer anacronismo, João Paulo II, na visita que fez à Sinagoga de Roma, disse estas palavras: “A Igreja deplora o ódio, as perseguições, as manifestações de anti-semitismo dirigidas contra os Judeus, em toda e qualquer época e por quem quer que seja. […] A visita de hoje pretende ser uma contribuição decisiva para a consolidação das boas relações entre as nossas duas comunidades. […] A Igreja de Cristo tem necessidade de descobrir o que a liga ao Judaísmo, perscrutando o seu próprio mistério. A religião judaica não nos é extrínseca, mas numa certa medida é intrínseca à nossa própria religião cristã. Com o Judaísmo nós temos uma relação que não temos com qualquer outra religião. Vós sois irmãos amados e, numa certa medida, pode-se dizer que sois os nossos irmãos mais velhos”.
Já aqui dissemos que os discípulos desta hora não têm nada a invejar aos discípulos doutras horas, nem sequer da primeira hora. Não que sejamos melhores que os nossos pais, mas porque há tentações terríveis por que eles tiveram de passar e, às vezes, soçobrar, para que nós pudéssemos hoje ser capazes de uma outra atitude. O medo dos outros! E, contudo, Jesus ensinou-nos a nunca termos medo, a nunca cedermos ao medo, a nunca nos deixarmos arrastar em cumplicidades de falsas solidariedades… A ‘questão judaica’ é, entre os cristãos, muito complexa, mas pode ser exemplar no tipo de relações a termos com os outros, de outros horizontes e azimutes. Com os muçulmanos, então… É verdade que nem sempre há reciprocidade. Em Marselha, os católicos ofereceram aos muçulmanos emigrantes uma igreja para o seu culto, o que não seria possível acontecer em relação aos católicos em qualquer país muçulmano. Mas os cristãos não podem esperar reciprocidade da parte dos outros para se adiantarem no reconhecimento das suas próprias responsabilidades, culpas e daquele amor universal que inclui os inimigos. Os judeus não têm alguma responsabilidade em relação às perseguições que sempre e em toda a parte todos lhes moveram? O seu modo de estar entre as nações não tem nada a ver com isso? A eles compete descobrir. A nós compete amar!
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 25 | Voz Portucalense, 24 de abril de 1986
Fotografia: Roma, Basílica de S. Pedro.