Passados 20 anos sobre a reforma da Liturgia, continuam a ouvir-se as mesmas queixas formuladas, na altura, por um grupo de intelectuais e artistas católicos: “Na Missa já não se pode rezar!…”. Passados, quase sem transição, da missa rezada à missa cantada, da missa em voz baixa à missa em voz alta, muitos lamentam a perda daquele silêncio tradicional que caracterizava as igrejas católicas. A seus olhos e ouvidos a Missa tornou-se barulhenta e os repetidos comentários e intervenções dos ministros tornou-se uma intrusão desagradável e desnecessária. Algumas instruções recentemente formuladas manifestam a mesma preocupação. Mas, de facto, em todas estas críticas ou insatisfações reina um grande equívoco litúrgico e pastoral. Pretender que a Missa seja, ou volte a ser, um tempo e um lugar de Oração representa desconhecimento sobre o que é a Missa. E contém em si um vício também: redução da Liturgia da Igreja à Missa, pastoralmente ou espiritualmente condenada a servir para tudo. Ora, a Missa não é Oração propriamente dita, embora exija uma atitude de oração. Ela é essencialmente Ação: Ação do Verbo e Ação de Graças. Ação desde o introito até à despedida. O que não quer dizer que não tenha alguns momentos fortes de silêncio e momentos altos de oração comunitária, aliás previstos e rubricados, se bem que quase nunca respeitados.
As extraordinárias possibilidades pastorais abertas pela autorização de se celebrar a Missa a qualquer hora do dia ou da noite, vieram agravar mais ainda a situação. Dantes, o jejum eucarístico acantonava ao domingo e à semana as celebrações eucarísticas nas primeiras horas da manhã; de tal maneira que à tarde ou noite só havia possibilidade de orações ou adorações. O Terço ou, na melhor das hipóteses, as Vésperas criavam assembleias de oração. Agora não. Quando e onde se recomendaria uma boa oração comunitária, esta é sem rebuços substituída por uma Missa. Missas a esmo, para tudo e para nada. De facto, na igreja parece já não haver lugar para a Oração. Só que a Missa nem tem culpa, nem pode substituir essa necessidade. Pretendê-lo é continuar a laborar num erro pastoral e litúrgico. É, além disso, um quebra-cabeças. Como fazê-lo? A Missa não dá para tudo!
As reformas conciliares deram-nos na Constituição Litúrgica uma carta magna para a santificação das festas, férias e horas da vida das comunidades cristãs. Nessa magna carta diz-se expressamente que a Eucaristia é “o ponto de chegada e o ponto de partida”, o cume da vida dos Cristãos. Sem o que leva à Eucaristia, sem o que deriva da Eucaristia, estamos ou ficamos privados de preparações, disposições e consequências. Entre as preparações, disposições e consequências, está a Oração pessoal e comunitária. Quem reduz a vida litúrgica à Missa, priva-se de apoios tão fundamentais com a própria Missa. É impossível ser cristão apenas uma hora por semana e/ou meia hora por dia. A Eucaristia é ponto de chegada para quem caminhou; é ponto de partida para quem sabe para onde vai.
Fazia-nos bem lançar os olhos a um retrato da Liturgia no século II. É Justino, o apologeta, quem no-lo transmitiu. Ele refere-se a uma assembleia precedida duma longa vigília, um pouco à imagem da nossa Vigília Pascal, onde havia clima, tempo e espaço para oração e silêncios, e até para interações entre as pessoas. Não uma vez por ano, mas todas as semanas:
“No Dia-do-Sol [como os romanos chamavam ao primeiro dia da semana, ainda hoje em inglês: ‘Sunday’], todos, nas cidades e nas aldeias, se reúnem num mesmo lugar: lêem-se as memórias dos Apóstolos e os escritos dos Profetas, durante um certo tempo. Quando o leitor acaba, o presidente faz um discurso para advertir e exortar à imitação destes belos ensinamentos. Em seguida levantamo-nos e juntos fazemos preces em voz alta. Depois, quando a oração termina, traz-se pão com vinho e água. O presidente faz então preces e eucaristias [ações de graça] durante um certo tempo e todo o povo responde com aclamação: Ámen! Segue-se depois a distribuição e a partilha dos dons consagrados e envia-se a sua parte aos ausentes pelo ministério dos diáconos. Os que possuem bens dão livremente e o que é recolhido destina-se aos órfãos, viúvas, doentes, presos, indigentes e hóspedes” [Primeira Apologia, 66-67].
Destinado ao Imperador para defesa dos Cristãos, este pequeno retrato duma Assembleia, na sua simplicidade, revela-nos já uma extrema complexidade de lugares, tempos e formas, impossível hoje de conseguir com tantas missas, expedidas e expeditivas.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 12 | Voz Portucalense, 16 de janeiro de 1986

Imagem: “Jardim com girassóis” [1905.06] | Klimt [1862-1918]