Fideísmo é o nome do vício de acreditar, hábito de acreditar tornado habituação. A fé é uma virtude. Uma virtude é um hábito, bom hábito que habilita quem o tem a ações boas segundo o princípio que o agir segue o ser. Hábito de acreditar. Apesar de teológica, a virtude da Fé corre sempre o perigo de habituação, exatamente como as virtudes morais. Não são os vícios desvios das virtudes? Ora, a habituação da Fé é um vício, círculo viciado, droga! O hábito de acreditar feito habituação não nos deixa progredir na Fé, tornando-nos prisioneiros das nossas próprias conquistas, sentados em cima das nossas certezas, feitas bagagem de quem já não viaja. O cardeal Saliège chama-lhe o pior dos sonos:
“O pior dos sonos.
Não é a doença do sono.
Não é o sono letárgico.
Não é o sono hipnótico.
O pior sono
É o sono dogmático”.
Os Cristãos portugueses habituaram-se a Portugal ou foi Portugal que se habituou a eles? Nossa doutrina já não é perigosa? No Evangelho já não há novidade? O que nos contam os jornalistas e os turistas que vão à União Soviética causa-nos o maior espanto: têm que deixar no posto fronteiriço toda e qualquer literatura pornográfica e a Bíblia!… A Bíblia é pornográfica ou é perigosa?! “E vós espalhastes pela cidade a vossa doutrina”. Por causa da nossa doutrina os Apóstolos foram chicoteados e, desde o ano 64 até 314, os que a professavam foram postos a ferros ou passados a ferro. Hoje, em meio mundo, a nossa doutrina não pode circular, a não ser na clandestinidade. Porquê? É perigosa? Em todo o caso, aqui não parece assim tão perigosa. De facto, uma doutrina nunca é perigosa em si própria. Torna-se perigosa só quando aqueles que a professam são e fazem aquilo que dizem. Os remédios, como os venenos, quando criam habituação, são inócuos.
“A minha paróquia é uma paróquia como as outras. Todas as paróquias se parecem. As paróquias de hoje, naturalmente. […] A minha paróquia é devorada pelo tédio, eis a palavra. Como tantas outras paróquias! O tédio devora-as diante dos nossos olhos, sem nada podermos fazer. Qualquer dia seremos contagiados e descobriremos em nós esse cancro. Pode-se viver durante muito tempo com isso” [Georges Bernanos, ‘Diário de um pároco de aldeia’, 1936].
Os grandes teólogos do século XX foram romancistas e poetas, leigos, já que a Teologia se tornou propriedade de clérigos profissionais. Foi sobretudo no género literário romanesco que os grandes temas da Fé e da Graça atingiram profundidade e atualidade. Não há nada de singular nisso, quando sabemos que foi na poesia salmódica e na ficção bíblica [Job, por exemplo] que a Palavra conseguiu chegar aonde o discurso sapiencial e a formulação jurídica da verdade não chegaram. Leon Bloy e Bernanos são hoje fundamentais para conhecermos o estado das almas de mil e novecentos.
Também em língua portuguesa os nossos melhores ficcionistas trataram da Igreja. Não há romance português onde não entrem padres e freiras, missas e curas, quase sempre com motejo, algumas vezes com seriedade, desde Alexandre Herculano e Camilo até aos autóctones tratamentos de Agustina. Mas que diferença em relação a Bernanos, a Mauriac, a Leon Bloy ou até mesmo Graham Greene! Nos romancistas portugueses os Cristãos fazem parte da paisagem, pertencem à nossa cultura. Naqueles outros são sempre algo de insólito, mesmo quando o Pecado os rói até à medula. Será que em Portugal a Fé criou habituação? “O sal estragado não serve para mais nada, que não seja para ser deitado fora e calcado pelos homens” [Mateus 5, 14]. Quem pode fazer este julgamento histórico? Tudo é muito complexo. Em História nada é simples. É verdade que fomos perseguidos pelos maçónicos portugueses e é estranho que isso não tenha feito mártires. Apesar de tudo, dos seus golpes baixos e dos nossos golpes baixos, muitos lutaram com valentia. Contra o nacional-socialismo, apesar de todas as cumplicidades, não foram poucos os Cristãos que souberam lutar e que não ficaram atrás dos melhores resistentes deste país. Voltados ao espaço livre, diante dos desafios da hora, vamos verificar se o que nos falta são meios ou são fins.
Houve e há atos dos Apóstolos no país dos Portugueses. Só que a História da igreja em Portugal anda confundida com a História de Portugal e não temos tido historiadores corajosos para tirar as brasas do fumeiro. Os competentes só têm sabido atirar lixo para a fogueira, num certo gosto mórbido preferencial pelas fogueiras da Inquisição, afinal tão recentes ainda.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 24 | Voz Portucalense, 17 de abril de 1986
Pintura: “Campo de trigo com ciprestes” [1889] | Vincent van Gogh [1853–1890]