Passados — em tão pouco tempo — da maior euforia para a maior depressão, eis-nos de novo na frase crítica, partidos a meio pelos dois mitos contraditórios: do regresso à Natureza e do Progresso que há de vir, acompanhados pela angústia do futuro e pelo medo dos velhos fantasmas. “Nada de novo sob o sol”, diria Qohelet. Este Século prometeu tanto e deu tão pouco, que o mundo inteiro anda exasperado. Só nos faltam os novos estóicos, para que a resignação volte a ser uma virtude. Apesar de Gabriel Marcel, à teologia das realidades temporais tem faltado o sentido existencial que lhe faria abrir todas as portas da modernidade. Esta falha é talvez a razão principal porque todos os nossos avanços em relação aos modernos — aos níveis científico, ético, social e político — aparecem sempre aos olhos de toda a gente com os eternos atrasos. Aparecemos sempre como quem chove no molhado… Razão porque, em vez de se virarem para os nossos discursos da Fé e da Esperança, os modernos viram-se para os nossos santos, como quem procura entrar em comunhão de certezas e de dúvidas. Não foi por mau gosto que em Cannes o filme de Manoel de Oliveira foi premiado, uma leitura cinematográfica de ‘O Sapato de Cetim’ de Paul Claudel [‘Le Soulier de Satin’, 1929]. E a confirmá-lo aí estão dois novos filmes, postos nos píncaros pela crítica: ‘Therése’ [Alain Cavalier, 1986], a vida de Teresa de Lisieux; e ‘The Mission’ [Roland Joffé,1986], uma epopeia dramática da ação missionária dos Jesuítas na América do Sul.
Há motivos para ficarmos espantados com o espanto do crítico de ‘La Actualité Religieuse’ [antigas ‘Informations Internationales Catholiques’]. O Mundo já não vive na hora de Maio 68, quando se lia nas paredes do metropolitano: “Plus jamais Claudel” [“Nunca mais Claudel”]. Ora, Manoel de Oliveira tornou Claudel extraordinariamente atual, com grande escândalo de J. P. Manigne: “Claudel não deixou de os espantar [aos modernos]. É mais duvidoso que os converta”. Porque hão de ser unicamente as nossas virtudes e as nossas certezas que convertem as pessoas? Em ‘O Sapato de Cetim’, Paul Claudel ficciona num grande drama a aventura messianista Ibérica. À primeira vista parece pouco edificante a descrição, em letras de ouro, duma das nossas mais terríveis tentações. Mas, de facto, isso só nos espanta a nós, pois fazemos uma teologia de essências, epítome de verdades, de tal maneira que o Evangelho não se reconhece nela. Há de facto, nunca deixamos de a ter, uma teologia existencialista a que demos os nomes ridículos de Ascética e Mística, e não porque a Ascética ou a Mística sejam ridículas, mas porque raramente as levamos a sério. Deu uma estranha doença nos Católicos: a ideia de que só os nossos bens evangelizarão o Mundo e de que é preciso livrar-nos quanto antes dos nossos males, de que culparemos os tempos passados imperfeitos… É um erro. Nós não nos livraremos assim tão facilmente dos nossos males, exatamente porque eles fazem parte dos nossos bens. Teresa d’Ávila é mais lida pelos nossos contemporâneos do que pelos nossos teólogos mais avançados ou mais puros.
Tornou-se um axioma a afirmação superbatida de que o mundo moderno tem falta do sentido do pecado. Pelos vistos parece que nós é que temos falta de sentido do pecado, pois não contamos com os nossos pecados para a Salvação do Mundo. Anda entre nós meio escondido — com o rabo de fora — um certo pelagianismo, que cuida da sua imagem face a um século que anda mais faminto da Graça do que necessitado das nossas certezas. Quando é que nos aceitamos a nós próprios, ao nosso passado e ao nosso presente? Ensinam os santos que a humildade faz as fundações da santidade. Parece que, na Igreja, andamos exasperados, tal e qual os consumidores numa sociedade que já não é de consumo nem de bem-estar.
Nós somos estes, somos assim. Não para ficar assim, evidentemente, nem para continuarmos estes que somos, mas outros à imagem e semelhança do Outro, no seguimento, na imitação e na identificação de Jesus. Fazia-nos bem voltar a ler a Carta aos Romanos. Mas, ganhámos-lhe medo desde que Lutero lhe fez a leitura neurótica. Ganhámos-lhe medo e ganhámos o gosto por leituras mais fáceis… razão por que ainda não conseguimos salmodear os Salmos que cantam com tanta elevação os nossos bens, como com realismo tangem os nossos males.
Só os simples são capazes de não tropeçar nas coisas complicadas. É próprio dos complicados tropeçar nas coisas mais simples. Aos discípulos desta hora é pedido que sejam desta hora. Não lhes é exigido que sejam da hora seguinte nem que, “pondo a mão no arado, olhem para trás”. Basta-lhes que sejam da sua hora. A Esperança? É o que faz vigiar e orar para não entrar em tentação. Fá-los andar, porque no Deserto não há caminhos feitos. Mas fá-los também esperar, porque há uma chegada e há uma espera.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 30 | Voz Portucalense, 29 de maio de 1986

Imagem: pintura de Vieira da Silva [1908-1992]