A liberdade dos outros. Não só a liberdade religiosa, mas toda a liberdade. A liberdade é indivisível. A nossa liberdade, a dos filhos de Deus, não tem nada a ver com a liberdade dos outros? De facto, pecar é o contrario da liberdade. “Todo aquele que comete o pecado é escravo!” [João, 8, 34]. Liberdade de pecar é contradição nos termos, pois que, livre é o homem que faz o que quer e o pecador não faz o que quer… Em vez de liberdade de pecar, deveria falar-se de direito a errar… coisa que estas sociedades chamadas desenvolvidas e progressistas admitem cada vez menos, multiplicando desmedidamente universos carcerários e concentracionários, onde a condição humana não tem mais hipótese de redenção. A crítica que o Apóstolo faz à Lei na Carta aos Romanos deveria ser conhecida pelos prolíferos legisladores deste século. É pena que Freud se tenha encandeado com Moisés [homem do Antigo Testamento] e não tenha prestado atenção a Paulo de Tarso. Até os velhos republicanos andam a ficar desiludidos com as suas escolas: afinal, ao contrário do que prometiam, por cada escola que se abre… há duas cadeias que se enchem! Quem diria? Mas a liberdade, a educação da liberdade, a experiência da liberdade, tem muito a ver com o direito de errar! Se este direito tem limites, como todos os direitos, a Lei — tendo em conta a condição humana universalmente pecadora [sem excluir os Santos!] — não pode [não tem o direito!] ocupar todo o campo da Moral. À Lei basta que respeite a Moral, mas não tem o direito de a substituir, ou de a fazer. Essa experiência histórica foi feita no Antigo Testamento e foi encerrada pelo Novo Testamento. Serviu de pedagogia até à chegada de Cristo. Guiou, mas não salvou, porque não tinha poder para salvar, só tinha poder para condenar. “O aguilhão da Morte é o Pecado, e a força do Pecado é a Lei!” [Coríntios, 15, 16].
Já não vivemos em Cristandade. Já não temos poder político para fazer leis ou informar a sua confecção. Tendo perdido o poder político, possuímos hoje um poder maior… se não malbaratarmos o prestígio moral da Igreja. Todo o mundo anda à procura da Ética, depois da falência do Catecismo Positivista. Todo o mundo sente mais ou menos conscientemente que se estará a criar monstros que acabarão por nos devorar a todos. Mais ou menos conscientemente os modernos começam a perceber que só o Bem é bom. Ora, a nossa Moral — que é moral-do-Bem — tem aqui, no terreno da Ética, o grande espaço para novas sementeiras. O terreno da Ética é um terreno de Cultura, terra da Promessa! Não é o terreno da Política. Este não é privilegiado. Nunca o foi. O nosso erro foi tê-lo considerado um dia. Não vamos repetir o erro, o erro de Santo Agostinho!
Erro trágico de Agostinho de Hipona. Os Donatistas não eram bons de assoar. Digamos mesmo que o famoso bispo não pretendeu fazer doutrina. Não tinha ele escrito e dito coisas formidáveis sobre a tolerância e sobre a verdadeira unidade da igreja? “Nas coisas certas, unidade; nas coisas discutíveis, liberdade; em todas as coisas, caridade”. “Muitos dos que aparentemente estão dentro, de facto estão fora; muitos dos que aparentemente estão fora, de facto estão dentro”. Como é possível que o autor destes princípios da Tolerância-Católica tenha sido também o autor da máxima da Intolerância-Católica?

“Há uma perseguição injusta, a que fazem os ímpios à Igreja de Cristo; há uma perseguição justa, a que faz a Igreja de Cristo aos ímpios. […] A Igreja persegue por amor e os ímpios por crueldade” [Carta 185].

Os Donatistas não eram bons de assoar. Mas Santo Agostinho, ao pretender justificar o seu apelo ao Imperador [príncipe cristão!], para intervir com o braço armado, nunca imaginou que o seu comentário a Lucas 14, 23 se tornasse a máxima da Intolerância-Católica durante séculos. É muito perigoso levar uma parábola à letra. Aliás, toda a Letra é perigosa. “A Letra mata!” [2.ª Coríntios 3, 6]. Não foi a Letra que matou Jesus? “Conforme a Lei Ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus” [João 19, 7]. Mas levar à letra uma parábola é imperdoável. “Força-os a entrar!”. Depois de convidados, os pobres, os aleijados e os coxos, ainda havia lugar à Mesa. Então o Rei mandou ao seu servo que fosse pelas encruzilhadas e caminhos e convidasse todo o mundo para a Festa. “Força-os a entrar!”, disse o Rei na parábola. Este forçar por força da linguagem parabólica tem toda a expressão dum apelo instante e duma grande vontade de meter toda a gente no Reino de Deus. Mas não em nenhuma significação de violência ou de perseguição por amor, coisa que Jesus nunca ensinou, nem autorizou. Mas não façamos de Santo Agostinho o bode expiatório das nossas frustrações históricas. Não o merece, apesar de tudo.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 27 | Voz Portucalense, 8 de maio de 1986

Pintura: “A Vocação de São Mateus” [1599-1600], Capela Contarelli, S. Luís dos Franceses [Roma] | Caravaggio [1571-1610]