Desde muito cedo duas correntes se estabeleceram na Igreja que, em determinados momentos, atingiram níveis de conflito grave e até de cisma. Uma insistia na Autenticidade, a outra na Abertura. O primeiro grande choque entre as Igrejas deu-se por ocasião da perseguição de Décio: pela primeira vez em grande número houve ‘lapsi’ e ‘relapsi’, cristãos caídos e recaídos por fraqueza face à tortura e ao martírio; não se aguentaram durante uma perseguição insinuosa, qual rede lançada e apertada para não deixar escapar nenhum dos peixes. A fação rigorista da Igreja jogou logo duro os seus trunfos. A culpa era daqueles que acolhiam e deixavam entrar qualquer um na Igreja. Já Hipólito se lançara pelas mesmas razões contra o bispo de Roma, Calixto, a quem acusava de laxismo e de aceitar na Igreja maus cristãos [anos 217-222]. O fogoso africano Tertuliano lançava as suas invetivas contra a mediocridade de muitos cristãos e de muitas Igrejas, e foi crescendo em intolerância até deixar a Igreja Católica e ingressar na Igreja Montana, que se pretendia a única Igreja autêntica do Espírito Santo [por volta de 213]. Mas o conjunto de Igrejas, em comunhão católica, aferindo o seu comportamento por Roma, mantiveram a abertura, concedendo aos caídos e aos recaídos a Penitência, ainda que muito rigorosa. Coisa curiosa: apesar das perseguições, apesar da Penitência muito rigorosa, as massas continuavam a ingressar na Igreja. A cisão entre os dois partidos, o da Autenticidade e o da Abertura, deu-se de forma dolorosa com o cisma de Donato pelas mesmas razões. Coube a Santo Agostinho [411] a reconciliação com os duros. A Abertura não é inimiga da Autenticidade. Mas enquanto esta última se deixa facilmente minar pelo fermento dos fariseus, a primeira nunca sabe até onde há de ir e, como Paulo, prefere ir longe demais do que ficar prisioneira da pura intolerância. Mas a Igreja dos Padres [‘padre’ aqui tem o sentido patrístico e quer dizer: Igreja das Fundações] soube, através da Ordem dos Catecúmenos e da Ordem dos Penitentes, encaixar em processos pedagógicos tanto os que se faziam cristãos como os se refaziam, coisa que até aos dias de hoje em termos pastorais temos dificuldade em conseguir. Toda esta questão histórica é muito complexa, em Actos e Actas teremos ocasião de progressivamente a ir esclarecendo. Por agora a questão interessa-nos para a compreensão profunda do que foi o processo de barbarização da Igreja, sempre afrontada com as ‘más companhias’.
Como Jesus Cristo, sua cabeça, a Igreja soube ir até ao fim, até ao fundo da miséria humana, até ao ponto de se não reconhecer. A passagem aos pagãos oficialmente decretada no Concílio de Jerusalém, e que provocou a rutura definitiva com os judeus, traduziu-se aquando da invasão dos Bárbaros num processo tremendo de massificação da Igreja, uma aventura espantosa cujas dimensões ainda estamos longe de compreender, com todas as suas misérias e grandezas. Digamos que foi preciso chegar o Concílio do Vaticano II para resolver o somatório das questões não resolvidas.
Bendita seja a Igreja que aceitou correr todos os riscos e que não temeu juntar-se a tão más companhias, e que também nisto soube seguir o seu mestre! Se houve oportunismos, é historicamente mais verdadeiro dizer que os bárbaros colaram-se à Igreja, apesar de Clóvis, especialmente com Clóvis, do que pretender que a Igreja colou-se aos bárbaros. Também entre os nossos adversários há fariseus sempre prontos a atirarem-nos pedras, como entre nós os há para esconder o que deve ser dito sobre os telhados.
“Os cristãos não se distinguem dos outros homens nem pelo país, nem pela língua, nem pelas roupas. Não habitam em cidades próprias, não se servem dum dialeto especial, o seu género de vida nada tem de singular. Estão dispersos nas cidades gregas e bárbaras conforme a situação de cada um. Conformam-se aos usos locais quanto à roupa, ao alimento e à maneira de viver, manifestando ao mesmo tempo as leis extraordinárias e verdadeiramente paradoxais da sua república espiritual. Residem cada um na sua própria pátria, mas como estrangeiros domiciliados. Cumprem todos os seus deveres como cidadãos e suportam todas as cargas como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é a sua pátria e toda a pátria lhe é uma terra estrangeira. Casam-se como toda a gente e têm filhos, mas não abandonam os seus recém-nascidos. Partilham a mesma mesa mas não a mesma cama…” [da Carta a Diogneto, em Alexandria por volta do ano 200].
Que a Igreja não se arrependa de prosseguir em más companhias, sejam elas os ricos [maus ricos como Zaqueu] ou os pobres sempre acusados de ‘não ter cabeça’, agora no Terceiro Mundo ou no Quarto Mundo ao pé da porta. Mantenha-se a Igreja de atalaia face aos bons ricos e aos zelotes que têm sempre boas palavras para os pobres, mas é para se servir deles para a conquista do Poder.
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 7 | Voz Portucalense, 12 de dezembro de 1985
Imagem: “Santo Ambrósio proíbe o imperador Teodósio de entrar na Catedral de Milão” [c. 1619-1620] | Antoon van Dyck [1599-1641]