A descoberta [?] da cruz onde Jesus foi crucificado atribuída a Santa Helena, mãe do imperador Constantino, por volta do ano 330 e, mais tarde, a sua recuperação das mãos dos Persas no ano 630, trouxe-nos duas festas da Santa Cruz: Invenção da Santa Cruz e Exaltação da Santa Cruz, reduzidas agora à segunda celebrada a 14 de setembro, numa espécie de duplicação da Adoração da Cruz em Sexta-feira Maior. Aquela invenção, no sentido de descoberta, situa o lugar crescente da Cruz entre os símbolos cristãos e objetos de culto. Antes da Paz Romana, a Cruz foi quase só um lugar teológico, materialmente não era objecto de veneração especial, pois tratava-se de um instrumento de execução de criminosos capaz de suscitar tanta repugnância como hoje a forca ou a cadeira eléctrica. A própria signação ou persignação das frontes dos catecúmenos, inicialmente pelo menos, não era em gesto de cruz mas a marcação do nome de Deus com a letra ‘tau’ [hebraica]: “Eu gravarei sobre ele o nome do meu Deus” [Apocalipse 3, 12]. No século IV a febre das relíquias multiplicou invenções, ou descobertas, de corpos de mártires e dos instrumentos dos seus suplícios. Na conjuntura da Lenda de Constantino, da sua vitória [‘In hoc signo vinces’] e da sua conversão, e no contexto daquela febre foi procurada e inventada [descoberta] a relíquia suprema, o instrumento da nossa salvação, de que o Sudário de Turim é agora apenas um eco já recuado.
Desde o século IV, o símbolo da Cruz impôs-se de uma forma crescente, até entrar em simbiose com os sinais cabalísticos das religiões dos povos convertidos. Não se sabe exatamente a forma geométrica da cruz onde Jesus foi crucificado, mas as influências culturais e religiosas com que se cruzou acabaram por lhe dar a forma perfeita, grega ou latina. Nos Tempos Modernos, a Cruz tornou-se uma devoção principal, acentuada pela teologia luterana que fez dela uma confirmação da impotência humana e pela teologia jansenista que a situou numa Caridade sem esperança. De relíquia a símbolo, de símbolo a superstição, de superstição a devoção, a Cruz acompanhou as decadências e as renovações da Igreja. Precisa agora de ser reinventada, redescoberta pela geração do regresso às Fontes para voltar a ser um lugar teológico numa leitura atualizada e profunda, apesar de vasta e compassiva, compreensiva, das imensas, medonhas, aspirações dos homens. As vezes em que Jesus se referiu à Cruz não podem dar lugar a confusões. Não é a cruz da condição humana, não é a cruz das servidões e das sujeições, mas exatamente o contrário. Jesus não morreu de desastre, não morreu de doença, nem de velhice, mas morreu por aquilo que fez e disse, por aquilo que amou. Estava escrito. Mas o que é que estava escrito? Uma única coisa estava escrita, ou antes duas coisas: Amor até morrer de amar e a experiência dos Profetas, todos perseguidos “desde o inocente Abel até Zacarias, assassinado entre o santuário e o altar” [Mateus 23, 35]. “Qual dos Profetas os vossos pais não perseguiram?”. Sim, estava escrito, era sabido que o Ódio é sempre homicida e que só o Amor pode vencê-lo. O único fatalismo da cruz de Jesus estava nos homens, pois quanto a Ele foi livremente que se entregou à morte, “obediência até à morte, e morte de cruz”. Fatalmente foi entregue, pois o Ódio é fatal. Mas livremente entregou-se, pois só o Amor é completamente livre. “Quem me quer seguir, tome a sua cruz todos os dias e siga-me!” [Marcos 8, 34]. Entre os Judeus, sobretudo entre os Zelotes, desde os Macabeus, que já havia a experiência da cruz sob a opressão romana. É a esta cruz-testemunho que Jesus se refere e não à cruz das doenças, dos desastres, dos acidentes e das misérias humanas. As cruzes da sujeição e da servidão da natureza é preciso vencê-las, segundo o mandamento primordial: “Domina a natureza que vos dou…” [Génesis 1, 28]. E mais tarde no Decálogo, de forma negativa: “Não vos deixeis dominar pela natureza, vossa natureza… nem dominar nem arrastar!…”. É preciso corrigir a leitura fatalista e resignada daquilo que o vulgo chama cruzes e nunca chegou a ser a Cruz de toda a nossa libertação, Redenção!
Mas mil vezes piores do que estas cruzes de sujeição e de servidão, que esvaziam a Cruz de Cristo e lhe furtam a Ressurreição, mil vezes piores porque a falsificam, são as cruzadas. Vai ser preciso estudar toda a história das Cruzadas, para nunca mais embarcarmos em cruzadas. O que levou o Papa Urbano II, em 1095, a organizar a Primeira Cruzada? É possível explicar-se esse fenómeno tão bizarro, em que pela primeira vez a Cruz fez uma aliança oficial com a Espada? Há hoje elementos suficientes para o explicar, que o mesmo não é justificar. Sem receio de cometermos anacronismo, que é o vício historicista de julgar e condenar o passado com critérios do presente, podemos afirmar que a Igreja sofria de grave decadência em relação ao Evangelho: “Não sabeis de que espírito sois!” [Lucas 9, 55].


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 19 | Voz Portucalense, 13 de março de 1986

Pintura: “Christ en croix” [c. 1910] | Odilon Redon [1840-1916]