Todas as dificuldades surgidas depois do Concílio do Vaticano II, sobretudo as levantadas pelo recente Sínodo Romano, não enganam. Chegaram, enfim, os grandes debates eclesiológicos, abafados desde a Reforma e Contra-Reforma. Assim como o primeiro concílio ecuménico, o de Niceia [325], abriu e não encerrou de facto o longo e penoso período das definições do Mistério de Cristo, também agora o último concílio ecuménico nos introduziu num tempo que se prevê extraordinariamente fecundo para as necessárias definições do Mistério da Igreja. A aparente fuga para a frente a que se assistiu nos últimos dias do Sínodo, apelando para o mistério, antes irá acentuar clivagens inevitáveis na direção sacramental. Como o Mistério de Cristo, também o Mistério da Igreja é da ordem da sacramentalidade, da visibilidade e não, como à primeira vista se desejaria e se quereria, dum certo ‘hermetismo sobrenaturalesco’.
Tudo o que de importante realmente se passa na Igreja não consegue escapar aos olhos atentos da informação. E o que se passou no Sínodo, que não refletiu mais do que de facto se passou nestes últimos vinte anos, foi muito importante. A primeira semana do Sínodo foi incomensuravelmente mais importante do que as conclusões não tiradas na segunda semana. Digamos que houve medo das conclusões e o Sínodo nem era um concílio, nem sequer um sínodo ordinário… Reduzidos a assembleias consultivas, estes sínodos, chegada a hora das conclusões, reconhecem humildemente que não chegam a ser um Sínodo, mas um serviço ao serviço do primaz da Igreja. Mas as conclusões espirituais tiradas não conseguiram iludir a necessidade de conclusões físicas não tiradas, que de facto não competiam a este tipo de sínodo. As esperanças levantadas em ordem à descentralização e à aplicação da Colegialidade não foram correspondidas e não ficaram comprometidas. Perda de tempo? Não tanto perda de tempo, mas antes tomada de tempo na aplicação dum Concílio que ainda não teve tempo de fazer o que disse. Tanto pior para os apressados, tanto melhor para aqueles que percebem que até a Graça precisa de tempo! Apesar de vivermos em tempos tumultuosos, o Vaticano II não se processará em tumulto, como aconteceu ao Concílio de Niceia, numa conjuntura bem diferente.
Este Sínodo estava assombrado desde o princípio. A Cúria Romana não consegue disfarçar o nervosismo que lhe provocam as Conferências Episcopais. Como toda e qualquer velha instituição veneranda, com uma história carregada de grandezas e misérias, a Cúria Romana estremece todas as vezes que a Colegialidade assume nas Conferências Episcopais o desassombro apostólico, em questões que até aqui lhe eram reservadas. Daí a tentação de voltar a ter tudo na mão e de deitar ao ar uma dúvida: as Conferências Episcopais têm fundamento teológico? Qual a sua autoridade? Não vieram aumentar a burocracia na igreja? Não vieram abafar a legítima autonomia de cada bispo na sua diocese? Vinda duma instituição excessivamente burocratizada, uma dúvida deste género não é tão inocente como parece, tanto mais quanto nos habituou, pela supressão progressiva das regiões eclesiais [arcebispados e patriarcados], a ver os bispos um a um, um por um, intimidados face ao poder central. É mais fácil administrar os bispos um a um, um por um, do que congregados em grandes conferências episcopais. Sobretudo, quando conferências episcopais como as do Brasil e dos Estados Unidos vêm assumindo um papel de importância crescente nos seus países, no mundo e até no seio da Igreja. Sobretudo quando conferências episcopais excelentemente organizadas, como a da França, não alienam as suas responsabilidades locais em campos tão delicados como o da expressão da Fé, numa sociedade em estado de secularização avançada. No Sínodo ouviram-se muitas queixas contra o centralismo curial. Não se ouviram queixas de bispos contra qualquer abuso coletivista das Conferencias Episcopais.
O fundamento teológico das Conferências Episcopais? Verdadeiramente a dúvida é espantosa, para não dizer escandalosa! Pois se ainda não havia concílios ecuménicos – o de Niceia, no século IV, foi o primeiro – e já havia por toda a parte conferências episcopais!… De Jerusalém à Espanha, da Gália a Cartago, centenas, para não dizer milhares, juntavam em sínodos, às vezes todos os anos, bispos e Igrejas da mesma região, que decidiam em conjunto, em grupo, em colégio, sobre questões tão importantes como a da Fé e da Disciplina. Roma só era consultada quando havia desacordo. Até os primeiros concílios ecuménicos eram promovidos por iniciativa de Igrejas locais e por questões levantadas entre elas, em questões essenciais. Em Actos e Actas teremos muitas vezes ocasião de fazer a geografia e a história destes inumeráveis sínodos. Pôr em dúvida a colegialidade das Conferências Episcopais causa-nos o maior espanto, para não dizer que nos escandaliza. E intrigar, como fez um arcebispo que não é da Cúria, dizendo que corremos o perigo de Igrejas nacionais, é trazer histórias insidiosas num tempo de Ecumenismo ainda tão frágil!…
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 11 | Voz Portucalense, 9 de janeiro de 1986
Imagem: “Jesus encarrega Pedro de cuidar de seu rebanho” [1515] | Raffaello Sanzio [1483-1520]