Em termos de evangelização, e noutros termos também, não devíamos com tanta facilidade assim enfiar a Descrença no rol das definições. A Descrença como a Crença. Valha-nos o Vaticano II! O fideísmo não foi condenado? Depois destes séculos todos, já tínhamos obrigação de não embarcar tão facilmente em conceitos flácidos, que não oferecem a mínima base de apoio ou de assento. Era preferível que, à boa maneira antiga, tratássemos os incréus com mais rudeza, sinal de maior respeito por eles e por nós próprios. Mas clichés não. Os descrentes não são tantos, nem tanto como isso. De facto, não lidamos com descrentes. Lidamos, sim, com uma variedade muito grande de crentes. Não acreditam nisto porque acreditam naquilo. E este verbo acreditar só tem a ver com a Fé na medida em que lhe passa ao lado, não porque choque com ela. Multidões de crenças e descrenças sobreviveram incrustadas nos muros das igrejas, sem que tenham incomodado a Cristandade ou tenham sido incomodadas por ela. Há séculos que muitos bons cristãos adoram o céu estrelado, na crença de que ele comanda o sol e a chuva, a vida e a morte, a saúde e a doença, apesar de todos os dias a Fé proclamar que o céu não é divino, pois foi criado por Deus talqualmente a Terra. Venham agora dizer-nos que as pessoas perderam o sentido do sagrado por já não estremecerem com a trovoada e por recorrerem aos médicos e não às preces quando a vida lhes estremece! O que a Fé não foi capaz de lhes inculcar, veio a ciência ensinar-lhes: que todos os movimentos celestes são aparentes. É ridículo e é pena que Galileu, pela negativa, tenha ajudado os homens a terem uma ideia correta do universo, o que, pela positiva, a Igreja não conseguiu. As pessoas já não acreditam no Céu? As pessoas não aceitam a boa-nova do Reino dos Céus? Ninguém descrê daquilo que não conhece. A Evangelização é um processo que não pode ficar a meio, nem a meias. Jesus foi muito claro a este respeito, neste capítulo. Sem morte não há Ressurreição. Está muito bem. Não devemos ser radicais, no sentido em que radicalidade se tornou sinónimo de terra queimada. Devemo-nos deixar de conservadorismos e de progressismos, mas sem esquecer que o centro das meias-tintas dos mornos não agrada a Jesus Cristo mais do que lhe desagradam os frios. Pelo contrário. Agradam-lhe mais as decisões claras por ou contra. Será que demos e continuamos a dar argumentos aos nossos adversários para nos acusarem de crenças em que de facto nunca acreditámos? À mesa do debate ou do diálogo seremos obrigados a distinguir a Igreja da Igreja, as crenças suportadas das crenças professadas? Diremos que a Igreja condenou o fideísmo, mas que ele na nossa prática pastoral não foi tão mau como isso? Será que ousaremos afirmar que a nossa Fé está mais próxima dos descrentes que dos crentes? Há já quem o faça. E não é só o incómodo Hans Küng. O que é muito mal feito e representa um péssimo conhecimento da Descrença moderna, a maior fábrica de mitos de todos os tempos, demónios e deuses, crenças aos montes em doses industriais…
Deitemos mão de Chesterton, e não tenhamos vergonha. Borges não tem por ele uma grande admiração?
“Estamos a chegar ao colapso total e ao grande contrassenso do nosso tempo. Misturamos duas coisas diferentes, duas coisas opostas. O progresso devia significar que estamos sempre mudando o mundo para o ajustar à visão. O progresso significa [exatamente agora] que estamos sempre mudando a visão. O progresso devia significar que nos esforçaríamos por, vagarosa mas seguramente, trazermos a justiça e a compaixão para o seio dos homens. O progresso significa que estamos demasiado prontos a pôr em dúvida a desirabilidade da justiça e da compaixão: uma página disparatada de qualquer prussiano faz com que os homens alimentem tal dúvida. O progresso devia significar que nos estamos sempre encaminhando para uma Nova Jerusalém, mas o progresso significa que essa Nova Jerusalém se está sempre afastando de nós. Não estamos a alterar o real para o ajustarmos ao ideal: alteramos o ideal porque é mais fácil” [Ortodoxia, p. 170-171].
Nesta alteração do ideal, as descrenças afirmam-se como crenças e as crenças como descrenças. Nunca se desacreditou tanto a Terra como hoje. Nunca se acreditou tanto no Céu como hoje. Só que alguns, pondo a Terra no Céu, deixam de acreditar nela, para acreditarem o Céu na Terra. Nós, de facto, não temos nada a ver com esta estranha condenação do século XX sempre a passar ao lado da Fé, apesar da multidão das suas crenças?
Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 13 | Voz Portucalene, 30 de janeiro de 1986
Pintura: “Amendoeira em Flor” [1890] | Vincent van Gogh [1853–1890]