A Igreja é comunitária dos pés à cabeça. Toda a devoção ou empenhamento isolado, assim como todo o fervor ou entusiasmo solitário, são contra a natureza da Comunhão dos Santos. Vem esta reflexão a propósito do Sínodo dos Bispos, prestes a reunir-se para fazer o balanço do vigésimo aniversário do Concílio do Vaticano II. E também a propósito das angustiadas lamentações proferidas pelos “zelotes” de todos os azimutes. Não, o Papa não está sozinho. Nem ele, nem o Bispo em cada Igreja local, nem o Presbítero na sua paróquia ou na sua capela. Mal iam se estivessem sozinhos e mal ia a Igreja se os deixasse sozinhos. Ninguém na Igreja está sozinho, a não ser que tenha feito cisma, a não ser que pratique “paternalismo”… tão contrário à recomendação de Jesus: “Sobre a terra não chameis pai a ninguém, vós sois todos irmãos!”.
A Igreja não pode pensar-se nem organizar-se ao modo-de-Estado em nenhum dos níveis de responsabilidade apostólica. Quem cultiva o poder é que se isola, como os ricos e como os sábios deste Mundo, e como esses “desinteressados” servidores do bem-comum que ditam a sua vontade pessoal a toda a gente. “Não sereis como eles”, disse-nos Jesus. Num tempo em que, desde a Revolução, os estados estão organizar-se ao modo-de-Igreja, mais “confessionais” do que nunca, mais opressivos, inquisitoriais e intolerantes do que Aquela a quem tantas pedras atiraram, a Igreja que tem que ser fiel à constituição que o Cristo lhe deu.
O Concílio do Vaticano II, em ordem a colmatar os três “abismos” que separavam o Papa dos outros Bispos, o Bispo do seu presbitério e o Padre dos Leigos, renovou todas as estruturas comunitárias degradadas e criou novas instituições permanentes capazes de garantir a aproximação entre todos os membros do Corpo de Cristo. São estas o Sínodo dos Bispos, as Conferências Episcopais, os Conselheiros Presbiterais e os Concelhos Pastorais onde, à falta de melhor, os Leigos têm assegurado um lugar de intervenção. Estas novas instituições visam a reanimação da Igreja como Povo-de-Deus.
“Agradou a Deus santificar e salvar os homens, não individualmente, excluindo toda a relação entre eles, mas antes constituí-los em povo, que o conhecesse na verdade e o servisse na santidade” [Lumen Gentium, 9].
Foi em grupo, em colégio, a dois e a três, a doze, a mais ou a muitos, a setenta e a setenta vezes sete, “em multidões vindas do Oriente e do Ocidente para se sentar à mesa do reino”, que o Cristo Jesus nos chamou, nos designou, nos projetou e nos constituiu. Por mais zelosos, excepcionais ou ímpares que sejam os ministros da Igreja, não há presbítero sem Comunidade, não há Bispo sem Presbitério, não há Papa sem Colégio cardinalício, sinodal ou conciliar. Em relação à mais Alta Autoridade, o princípio, a doutrina foi sempre esta: ao Colégio Apostólico [incluindo Pedro] sucedeu o Colégio dos Bispos [incluindo o Papa]: a Pedro e aos outros Apóstolos sucederam o Papa [que é Bispo] e os outros Bispos. Ao Papa ninguém lhe tira o primado, Ao Bispo ninguém lhe nega a Catedral, ao Presbítero ninguém lhe recusa o seu sacerdócio “ministerial”. Mas a todos, pela colegialidade, pela corresponsabilidade, pela participação, se exige que não se isolem no topo, pois são o que são não por si nem para si, antes pelo Cristo e para a Igreja, para a Assembleia, para a Comunidade. Depois de tanto “monarquismo” praticado até à saciedade, já era tempo de deixar de ler enviesado os textos de Inácio de Antioquia, que durante tanto tempo serviram para justificar o isolamento ministerial: “Assim como o Senhor nada fez, nem por ele mesmo, nem pelos seus Apóstolos, sem o Pai, com o qual é Um, assim também vós nada façais sem o Bispo e os Presbíteros. Seria em vão que tentaríeis fazer seja o que for… Fazei pois tudo em comunidade: uma mesma oração, uma mesma prece e um só mesmo espírito, uma mesma esperança, animados pela caridade numa alegria inocente. Tudo isto é Jesus Cristo, acima do qual não há nada” [Carta aos Magnesianos 3, 7].
Quem lê estes textos do ilustre mártir à luz da rica vida comunitária da Igreja do século II, não pode fazer interpretações “monarquistas”, pois toda a importância do Bispo advém da importância da Comunidade. O Bispo é da Igreja, da Assembleia, da Comunidade. Ou para viver-em-Comunidade não temos outra saída que não seja o Deserto ou o Convento? Não. Na Igreja todos os lugares são comunitários. Todos os lugares, tempos e modos.


Leonel Oliveira
Actos e Actas n.º 3 | Voz Portucalense, 14 de novembro de 1985